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quinta-feira, 26 de setembro de 2013

CHUMBAR O PEC IV FOI UM ERRO, DISSE A TROIKA!

POLÍTICA DESASTROSA!  ERROS QUE SE VÃO PAGAR CAROS... A TROIKA RECONHECEU. AGORA A PERGUNTA:  QUEM VAI PAGAR AS ASNEIRAS?


Quantos não falaram, em devido tempo, do disparate que era a intenção das oposições da esquerda à direita em chumbar o PEC IV, que originaria a vinda da Troika? Não deram ouvidos e a loucura  aconteceu! Hoje é a própria Troika a reconhecer: "TROIKA DIZ QUE CHUMBAR O PEC IV FOI ERRADO". A nossa vizinha Espanha não seguiu esse caminho.

Com a devida vénia do CM, disponibilizamos link:

IN  "https://www.facebook.com/photo.php?fbid=600713016634504&set=a.130245330347944.11575.100000874344746&type=1&theater"

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS - GLOBALIZAÇÃO

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

Com a devida vénia do

DOUTOR EM SOCIOLOGIA DO DIREITO PELA UNIVERSIDADE DE YALE, PROFESSOR CATEDRÁTICO DA FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, ETC.










AUTHOR

"Boaventura de Sousa Santos

Leading Portuguese social theorist, director of the Center for Social Studies at the University of Coimbra, has written and published widely on the issue of globalization.
 

OS PROCESSOS DA GLOBALIZAÇÃO




1. Introdução

Nas três últimas décadas, as interacções transnacionais conheceram uma intensificação dramática, desde a globalização dos sistemas de produção e das transferências financeiras, à disseminação, a uma escala mundial, de informação e imagens através dos meios de comunicação social ou às deslocações em massa de pessoas, quer como turistas, quer como trabalhadores migrantes ou refugiados. A extraordinária amplitude e profundidade destas interacções transnacionais levaram a que alguns autores as vissem como ruptura em relação às anteriores formas de interacções transfronteiriças, um fenómeno novo designado por "globalização" ( Featherstone , 1990; Giddens , 1990; Albrow e King , 1990), "formação global" ( Chase-Dunn , 1991), "cultura global" ( Appadurai , 1990, 1997; Robertson , 1992), "sistema global" ( Sklair , 1991), "modernidades globais'' (Featherstone et al., 1995), "processo global" ( Friedman , 1994), "culturas da globalização" ( Jameson e Miyoshi , 1998) ou "cidades globais" ( Sassen , 1991, 1994; Fortuna, 1997). Giddens define globalização como "a intensificação de relações sociais mundiais que unem localidades distantes de tal modo que os acontecimentos locais são condicionados por eventos que acontecem a muitas milhas de distância e vice versa" e acusa os sociólogos de uma acomodação indevida à ideia de "sociedade" enquanto um sistema fechado (1990: 64). No mesmo sentido, Featherstone desafia a sociologia a "teorizar e encontrar formas de investigação sistemática que ajudem a clarificar estes processos globalizantes e estas formas destrutivas de vida social que tornam problemático o que por muito tempo foi visto como o objecto mais básico da sociologia: a sociedade concebida quase exclusivamente como o Estado-nação bem delimitado (1990: 2). Para o Grupo de Lisboa, a globalização é uma fase posterior à internacionalização e à multinacionalização porque, ao contrário destas, anuncia o fim do sistema nacional enquanto núcleo central das actividades e estratégias humanas organizadas (1994).

Uma revisão dos estudos sobre os processos de globalização mostra-nos que estamos perante um fenómeno multifacetado com dimensões económicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo. Por esta razão, as explicações monocausais e as interpretações monolíticas deste fenómeno parecem pouco adequadas. Acresce que a globalização das últimas três décadas, em vez de se encaixar no padrão moderno ocidental de globalização - globalização como homogeneização e uniformização - sustentado tanto por Leibniz, como por Marx, tanto pelas teorias da modernização, como pelas teorias do desenvolvimento dependente, parece combinar a universalização e a eliminação das fronteiras nacionais, por um lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade étnica e o regresso ao comunitarismo, por outro. Além disso, interage de modo muito diversificado com outras transformações no sistema mundial que lhe são concomitantes, tais como o aumento dramático das desigualdades entre países ricos e países pobres e, no interior de cada país, entre ricos e pobres, a sobrepopulação, a catástrofe ambiental, os conflitos étnicos, a migração internacional massiva, a emergência de novos Estados e a falência ou implosão de outros, a proliferação de guerras civis, o crime globalmente organizado, a democracia formal como uma condição política para a assistência internacional, etc.

Antes de propor uma interpretação da globalização contemporânea, descreverei brevemente as suas características dominantes, vistas de uma perspectiva económica, política e cultural. De passo aludirei aos três debates mais importantes que tem suscitado, formuláveis em termos das seguintes questões: 1) a globalização é um fenómeno novo ou velho?; 2) a globalização é monolítica, ou tem aspectos positivos e aspectos negativos?; 3) aonde conduz a crescente intensificação da globalização? Nos debates acerca da globalização há uma forte tendência para reduzi-la às suas dimensões económicas. Sem duvidar da importância de tal dimensão, penso que é necessário dar igual atenção às dimensões social, política e cultural.

Falar de características dominantes da globalização pode transmitir a ideia de que a globalização é não só um processo linear, mas também um processo consensual. Trata-se obviamente de uma ideia falsa, como se mostrará adiante. Mas apesar de falsa é, ela própria, também dominante. E sendo falsa, não deixa de ter uma ponta de verdade. A globalização, longe de ser consensual, é, como veremos, um vasto e intenso campo de conflitos entre grupos sociais, Estados e interesses hegemónicos, por um lado, e grupos sociais, Estados e interesses subalternos, por outro; e mesmo no interior do campo hegemónico há divisões mais ou menos significativas. No entanto, por sobre todas as suas divisões internas, o campo hegemónico actua na base de um consenso entre os seus mais influentes membros. É esse consenso que não só confere à globalização as suas características dominantes, como também legitima estas últimas como as únicas possíveis ou as únicas adequadas. Daí que, da mesma forma que aconteceu com os conceitos que a precederam, tais como modernização e desenvolvimento, o conceito de globalização tenha uma componente descritiva e uma componente prescritiva. Dada a amplitude dos processos em jogo, a prescrição é um conjunto vasto de prescrições todas elas ancoradas no consenso hegemónico. Este consenso é conhecido por "consenso neoliberal" ou "Consenso de Washington" por ter sido em Washington, em meados da década de oitenta, que ele foi subscrito pelos Estados centrais do sistema mundial, abrangendo o futuro da economia mundial, as políticas de desenvolvimento e especificamente o papel do Estado na economia. Nem todas as dimensões da globalização estão inscritas do mesmo modo neste consenso, mas todas são afectadas pelo seu impacto. O consenso neoliberal propriamente dito é um conjunto de quatro consensos adiante mencionados dos quais decorrem outros que serão igualmente referidos. Este consenso está hoje relativamente fragilizado em virtude de os crescentes conflitos no interior do campo hegemónico e da resistência que tem vindo a ser protagonizada pelo campo subalterno ou contra-hegemónico. Isto é tanto assim que o período actual é já designado por pós-Consenso de Washington. No entanto, foi esse consenso que nos trouxe até aqui e é por isso sua a paternidade das características hoje dominantes da globalização.

Os diferentes consensos que constituem o consenso neoliberal partilham uma ideia-força que, como tal, constitui um meta consenso. Essa ideia é a de que estamos a entrar num período em que desapareceram as clivagens políticas profundas. As rivalidades imperialistas entre os países hegemónicos, que no século XX provocaram duas guerras mundiais, desapareceram, dando origem à interdependência entre as grandes potências, à cooperação e à integração regionais. Hoje em dia, existem apenas pequenas guerras, quase todas na periferia do sistema mundial e muitas delas de baixa intensidade. De todo o modo, os países centrais, através de vários mecanismos (intervenções selectivas, manipulação da ajuda internacional, controlo através da dívida externa), têm meios para manter sob controlo esses focos de instabilidade. Por sua vez, os conflitos entre capital e trabalho que, por deficiente institucionalização, contribuíram para a emergência do fascismo e do nazismo, acabaram sendo plenamente institucionalizados nos países centrais depois da Segunda Guerra Mundial. Hoje, num período pós-fordista, tais conflitos estão a ser relativamente desinstitucionalizados sem que isso cause qualquer instabilidade porque, entretanto, a classe operária fragmentou-se e estão hoje a emergir novos compromissos de classe menos institucionalizados e a ter lugar em contextos menos corporativistas.

Deste metaconsenso faz ainda parte a ideia de que desapareceram igualmente as clivagens entre diferentes padrões de transformação social. Os três primeiros quartéis do século XX foram dominados pelas rivalidades entre dois padrões antagónicos: a revolução e o reformismo. Ora se, por um lado, o colapso da União Soviética e a queda do Muro de Berlim significaram o fim do paradigma revolucionário, a crise do Estado-Providência nos países centrais e semiperiféricos significa que está igualmente condenado o paradigma reformista. O conflito Leste/Oeste desapareceu e arrastou consigo o conflito Norte/Sul que nunca foi um verdadeiro conflito e que é agora um campo fértil de interdependências e cooperações. Em face disto, a transformação social é, a partir de agora, não uma questão política, e sim uma questão técnica. Ela não é mais que a repetição acelerada das relações cooperativas entre grupos sociais e entre Estados.

Fukuyama (1992), com a sua ideia do fim da história, deu expressão e divulgação a este metaconsenso. Huntington (1993) secundou-o com a sua ideia do "choque de civilizações", ao defender que as clivagens tinham deixado de ser políticas para passarem a ser civilizacionais. É a ausência das clivagens políticas da modernidade ocidental que leva Huntington a reinventá-las em termos de uma ruptura entre o Ocidente, agora entendido como tipo de civilização, e o que misteriosamente designa por "conexão islâmica confucionista". Este metaconsenso e os que decorrem subjazem às características dominantes da globalização em suas múltiplas facetas a seguir descritas. Pelo que ficou dito atrás e pela análise que se seguirá, torna-se claro que as características dominantes da globalização são as características da globalização dominante ou hegemónica. Mais adiante faremos a distinção, para nós crucial, entre globalização hegemónica e globalização contra-hegemónica.

2. A globalização económica e o Neoliberalismo

Fröbel, Heinrichs e Kreye (1980) foram provavelmente os primeiros a falar, no início da década de oitenta, da emergência de uma nova divisão internacional do trabalho , baseada na globalização da produção levada a cabo pelas empresas multinacionais, gradualmente convertidas em actores centrais da nova economia mundial. Os traços principais desta nova economia mundial são os seguintes: economia dominada pelo sistema financeiro e pelo investimento à escala global; processos de produção flexíveis e multilocais; baixos custos de transporte; revolução nas tecnologias de informação e de comunicação; desregulação das economias nacionais; preeminência das agências financeiras multilaterais; emergência de três grandes capitalismos transnacionais: o americano, baseado nos EUA e nas relações privilegiadas deste país com o Canadá, o México e a América Latina; o japonês, baseado no Japão e nas suas relações privilegiadas com os quatro pequenos tigres e com o resto da Ásia; e o europeu, baseado na União Europeia e nas relações privilegiadas desta com a Europa de Leste e com o Norte de África.

Estas transformações têm vindo a atravessar todo o sistema mundial, ainda que com intensidade desigual consoante a posição dos países no sistema mundial. As implicações destas transformações para as políticas económicas nacionais podem ser resumidas nas seguintes orientações ou exigências: as economias nacionais devem abrir-se ao mercado mundial e os preços domésticos devem tendencialmente adequar-se aos preços internacionais; deve ser dada prioridade à economia de exportação; as políticas monetárias e fiscais devem ser orientadas para a redução da inflação e da dívida pública e para a vigilância sobre a balança de pagamentos; os direitos de propriedade privada devem ser claros e invioláveis; o sector empresarial do Estado deve ser privatizado; a tomada de decisão privada, apoiada por preços estáveis, deve ditar os padrões nacionais de especialização; a mobilidade dos recursos, dos investimentos e dos lucros; a regulação estatal da economia deve ser mínima; deve reduzir-se o peso das políticas sociais no orçamento do Estado, reduzindo o montante das transferências sociais, eliminando a sua universalidade, e transformando-as em meras medidas compensatórias em relação aos estratos sociais inequivocamente vulnerabilizados pela actuação do mercado.[1] Centrando-se no impacto urbano da globalização económica, Saskia Sassen detecta mudanças profundas na geografia, na composição e estrutura institucional da economia global (Sassen, 1994: 10). No que respeita à nova geografia, argumenta que "comparativamente aos anos cinquenta, os anos oitenta conheceram um estreitamento da geografia da economia global e a acentuação do eixo Este-Leste. Isto torna-se evidente com o enorme crescimento do investimento dentro do que é muitas vezes denominado pela Tríade : os Estados Unidos da América, a Europa Ocidental e o Japão" (Sassen, 1994:10). Outra característica da nova geografia é que o investimento estrangeiro directo, do qual, durante uns tempos, a América Latina foi o maior beneficiário, dirigiu-se para Leste, Sul e Sudeste Asiático, onde a taxa anual de crescimento aumentou em média 37% por ano entre 1985 e 1989. Por outro lado, enquanto nos anos cinquenta o maior fluxo internacional era o comércio mundial, concentrado nas matérias-primas, outros produtos primários e recursos manufacturados, a partir dos anos oitenta a distância entre o crescimento da taxa de exportações e o crescimento da taxa dos fluxos financeiros aumentou drasticamente: após a crise de 1981-82 e até 1990, o investimento estrangeiro directo global cresceu em média 29% por ano, uma subida histórica (Sassen, 1994: 14).

Por fim, no que toca à estrutura institucional, Sassen defende que estamos perante um novo regime internacional, baseado na ascendência da banca e dos serviços internacionais. As empresas multinacionais são agora um importante elemento na estrutura institucional, juntamente com os mercados financeiros globais e com os blocos comerciais transnacionais. De acordo com Sassen, todas estas mudanças contribuíram para a formação de novos locais estratégicos na economia mundial: zonas de processamento para exportação, centros financeiros offshore e cidades globais (Sassen, 1994: 18). Uma das transformações mais dramáticas produzidas pela globalização económica neoliberal reside na enorme concentração de poder económico por parte das empresas multinacionais: das 100 maiores economias do mundo, 47 são empresas multinacionais; 70% do comércio mundial é controlado por 500 empresas multinacionais; 1% das empresas multinacionais detém 50% do investimento directo estrangeiro ( Clarke , 1996).

Em suma, a globalização económica é sustentada pelo consenso económico neoliberal cujas três principais inovações institucionais são: restrições drásticas à regulação estatal da economia; novos direitos de propriedade internacional para investidores estrangeiros, inventores e criadores de inovações susceptíveis de serem objecto de propriedade intelectual (Robinson, 1995: 373); subordinação dos Estados nacionais às agências multilaterais tais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio. Dado o carácter geral deste consenso, as receitas em que ele se traduziu foram aplicadas, ora com extremo rigor (o que designo por modo da jaula de ferro), ora com alguma flexibilidade (o modo da jaula de borracha). Por exemplo, os países asiáticos evitaram durante muito tempo aplicar integralmente as receitas e alguns deles, como, por exemplo, a Índia e a Malásia, conseguiram até hoje aplicá-las apenas selectivamente.

Como veremos a seguir, são os países periféricos e semiperiféricos os que mais estão sujeitos às imposições do receituário neoliberal, uma vez que este é transformado pelas agências financeiras multilaterais em condições para a renegociação da dívida externa através dos programas de ajustamento estrutural. Mas, dado o crescente predomínio da lógica financeira sobre a economia real, mesmo os Estados centrais, cuja dívida pública tem vindo a aumentar, estão sujeitos às decisões das agências financeiras de rating, ou seja, das empresas internacionalmente acreditadas para avaliar a situação financeira dos Estados e os consequentes riscos e oportunidades que eles oferecem aos investidores internacionais. Por exemplo, a baixa de nota decretada pela empresa Moody's à dívida pública da Suécia e do Canadá em meados da década de noventa foi decisiva para os cortes nas despesas sociais adoptados pelos dois países (Chossudovsky, 1997: 18).

3. A globalização social e as desigualdades

Quanto às relações sócio-políticas, tem sido defendido que, embora o sistema mundial moderno tenha sido sempre estruturado por um sistema de classes, uma classe capitalista transnacional está hoje a emergir cujo campo de reprodução social é o globo enquanto tal e que facilmente ultrapassa as organizações nacionais de trabalhadores, bem como os Estados externamente fracos da periferia e da semiperiferia do sistema mundial.

As empresas multinacionais são a principal forma institucional desta classe capitalista transnacional e a magnitude das transformações que elas estão a suscitar na economia mundial está patente no facto de que mais de um terço do produto industrial mundial é produzido por estas empresas e de que uma percentagem muito mais elevada é transaccionado entre elas. Embora a novidade organizacional das empresas multinacionais possa ser questionada, parece inegável que a sua prevalência na economia mundial e o grau e eficácia da direcção centralizada que elas adquirem as distingue das formas precedentes de empresas internacionais ( Becker e Sklar , 1987: 2).

O impacto das empresas multinacionais nas novas formações de classe e na desigualdade a nível mundial tem sido amplamente debatido nos últimos anos. Dentro da tradição da teoria da dependência, Evans foi um dos primeiros a analisar a "tripla aliança" entre as empresas multinacionais, a elite capitalista local e o que chama "burguesia estatal" enquanto base da dinâmica de industrialização e do crescimento económico de um país semiperiférico como o Brasil ( Evans , 1979, 1986). Becker e Sklar, que propõem a teoria do pós-imperialismo, falam de uma emergente burguesia de executivos, uma nova classe social saída das relações entre o sector administrativo do Estado e as grandes empresas privadas ou privatizadas. Esta nova classe é composta por um ramo local e por um ramo internacional. O ramo local, a burguesia nacional, é uma categoria socialmente ampla que envolve a elite empresarial, os directores de empresas, os altos funcionários do Estado, líderes políticos e profissionais influentes. Apesar de toda a heterogeneidade, estes diferentes grupos constituem, de acordo com os autores, uma classe, "porque os seus membros, apesar da diversidade dos seus interesses sectoriais, partilham uma situação comum de privilégio sócio-económico e um interesse comum de classe nas relações do poder político e do controlo social que são intrínsecas ao modo de produção capitalista". O ramo internacional, a burguesia internacional, é composta pelos gestores das empresas multinacionais e pelos dirigentes das instituições financeiras internacionais (1987: 7).

As novas desigualdades sociais produzidas por esta estrutura de classe têm vindo a ser amplamente reconhecidas mesmo pelas agências multilaterais que têm liderado este modelo de globalização, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Para Evans, o modelo de industrialização e crescimento baseado na "tripla aliança" é inerentemente injusto e apenas capaz de um tipo de redistribuição "da massa da população para a burguesia estatal, as multinacionais e o capital local. A manutenção de um equilíbrio delicado entre os três parceiros milita contra qualquer possibilidade de um tratamento sério às questões da redistribuição de rendimentos, mesmo que membros da elite expressem um apoio ao princípio teórico da redistribuição de rendimentos" (1979: 288). Em comparações mais recentes entre os modelos e padrões de desigualdade social da América Latina e do Leste Asiático, Evans acrescenta outros factores que, em sua opinião, podem ter contribuído para que o modelo de desenvolvimento asiático tenha produzido relativamente menos desigualdades que o modelo brasileiro. Entre esses factores contabiliza, a favor do modelo asiático, a maior autonomia do Estado, a eficiência da burocracia estatal, a reforma agrária e a existência de um período inicial de protecção em relação ao capitalismo dos países centrais (1987).[2]

É hoje evidente que a iniquidade da distribuição da riqueza mundial se agravou nas duas últimas décadas: 54 dos 84 países menos desenvolvidos viram o seu PNB per capita decrescer nos anos 80; em 14 deles a diminuição rondou os 35%; segundo o Relatório do Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas de 2001 (PNUD, 2001), mais de 1,2 biliões de pessoas (pouco menos que 1/4 da população mundial) vivem na pobreza absoluta, ou seja, com um rendimento inferior a um dólar por dia e outros 2,8 biliões vivem apenas com o dobro desse rendimento (PNUD, 2001: 9).[3] Segundo o Relatório do Desenvolvimento do Banco Mundial de 1995, o conjunto dos países pobres, onde vive 85,2% da população mundial, detém apenas 21,5% do rendimento mundial, enquanto o conjunto dos países ricos, com 14,8% da população mundial, detém 78,5% do rendimento mundial. Uma família africana média consome hoje 20% menos do que consumia há 25 anos. Segundo o Banco Mundial, o continente africano foi o único em que, entre 1970 e 1997, se verificou um decréscimo da produção alimentar (World Bank, 1998). O aumento das desigualdades tem sido tão acelerado e tão grande que é adequado ver as últimas décadas como uma revolta das elites contra a redistribuição da riqueza com a qual se põe fim ao período de uma certa democratização da riqueza iniciado no final da Segunda Guerra Mundial. Segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano do PNUD relativo a 1999, os 20% da população mundial a viver nos países mais ricos detinham, em 1997, 86% do produto bruto mundial, enquanto os 20% mais pobres detinham apenas 1%. Segundo o mesmo Relatório, mas relativo a 2001, no quinto mais rico concentram-se 79% dos utilizadores da internet. As desigualdades neste domínio mostram quão distantes estamos de uma sociedade de informação verdadeiramente global. A largura da banda de comunicação electrónica de São Paulo, uma das sociedades globais, é superior à de África no seu todo. E a largura da banda usada em toda a América Latina é quase igual à disponível para a cidade de Seul (PNUD, 2001: 3).

Nos últimos trinta anos a desigualdade na distribuição dos rendimentos entre países aumentou dramaticamente. A diferença de rendimento entre o quinto mais rico e o quinto mais pobre era, em 1960, de 30 para 1, em 1990, de 60 para 1 e, em 1997, de 74 para 1. As 200 pessoas mais ricas do mundo aumentaram para mais do dobro a sua riqueza entre 1994 e 1998. A riqueza dos três mais ricos bilionários do mundo excede a soma do produto interno bruto dos 48 países menos desenvolvidos do mundo (PNUD, 2001).

A concentração da riqueza produzida pela globalização neoliberal atinge proporções escandalosas no país que tem liderado a aplicação do novo modelo económico, os EUA. Já no final da década de oitenta, segundo dados do Federal Reserve Bank, 1% das famílias norte-americanas detinha 40% da riqueza do país e as 20% mais ricas detinham 80% da riqueza do país. Segundo o Banco, esta concentração não tinha precedentes na história dos EUA, nem comparação com os outros países industrializados (Mander, 1996: 11).

No domínio da globalização social, o consenso neoliberal é o de que o crescimento e a estabilidade económicos assentam na redução dos custos salariais, para o que é necessário liberalizar o mercado de trabalho, reduzindo os direitos laborais, proibindo a indexação dos salários aos ganhos de produtividade e os ajustamentos em relação ao custo de vida e eliminando a prazo a legislação sobre salário mínimo. O objectivo é impedir "o impacto inflacionário dos aumentos salariais". A contracção do poder de compra interno que resulta desta política deve ser suprida pela busca de mercados externos. A economia é, assim, dessocializada, o conceito de consumidor substitui o de cidadão e o critério de inclusão deixa de ser o direito para passar a ser a solvência. Os pobres são os insolventes (o que inclui os consumidores que ultrapassam os limites do sobreendividamento). Em relação a eles devem adoptar-se medidas de luta contra a pobreza, de preferência medidas compensatórias que minorem, mas não eliminem, a exclusão, já que esta é um efeito inevitável (e, por isso, justificado) do desenvolvimento assente no crescimento económico e na competitividade a nível global. Este consenso neoliberal entre os países centrais é imposto aos países periféricos e semiperiféricos através do controlo da dívida externa efectuado pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. Daí que estas duas instituições sejam consideradas responsáveis pela "globalização da pobreza" (Chossudovsky, 1997). A nova pobreza globalizada não resulta de falta de recursos humanos ou materiais, mas tão só do desemprego, da destruição das economias de subsistência e da minimização dos custos salariais à escala mundial.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, os países pobres têm a seu cargo 90% das doenças que ocorrem no mundo, mas não têm mais do 10% dos recursos globalmente gastos em saúde; 1/5 da população mundial não tem qualquer acesso a serviços de saúde modernos e metade da população mundial não tem acesso a medicamentos essenciais. A área da saúde é talvez aquela em que de modo mais chocante se revela a iniquidade do mundo. Segundo o último Relatório do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, em 1998, 968 milhões de pessoas não tinham acesso a água potável, 2,4 biliões (pouco menos que metade da população mundial) não tinha acesso a cuidados básicos de saúde; em 2000, 34 milhões de pessoas estavam infectadas com HIV/SIDA, dos quais 24,5 milhões na África subsahariana (UNAIDS, 2000: 6); em 1998, morriam anualmente 12 milhões de crianças (com menos de 5 anos) de doenças curáveis (UNICEF, 2000). As doenças que mais afectam a população pobre do mundo são a malária, a tuberculose e a diarreia.[4] Ante este quadro não pode ser mais chocante a distribuição mundial dos gastos com a saúde e a investigação médica. Por exemplo, apenas 0,1% do orçamento da pesquisa médica e farmacêutica mundial - cerca de 100 milhões de dólares em 1998 (PNUD, 2001: 3) - é destinado à malária, enquanto a quase totalidade dos 26,4 biliões de dólares investidos em pesquisa pelas multinacionais farmacêuticas se destina às chamadas "doenças dos países ricos": cancro, doenças cardiovasculares, do sistema nervoso, doenças endócrinas e do metabolismo. O que não admira se tivermos em mente que a América Latina representa apenas 4% das vendas farmacêuticas globais e a África, 1%. É por isso também que apenas 1% das novas drogas comercializadas pelas companhias farmacêuticas multinacionais entre 1975 e 1997 se destinaram especificamente ao tratamento de doenças tropicais que afectam o Terceiro Mundo (Silverstein, 1999).

Apesar do aumento chocante da desigualdade entre países pobres e países ricos, apenas 4 destes últimos cumprem a sua obrigação moral de contribuir com 0.7% do Produto Interno Bruto para a ajuda ao desenvolvimento. Aliás, segundo dados da OCDE, esta percentagem diminui entre 1987 e 1997 de 0,33 para 0,22 (OCDE/DAC, 2000). O mais perverso dos programas de ajuda internacional é o facto de eles ocultarem outros mecanismos de transferências financeiras em que os fluxos são predominantemente dos países mais pobres para os países mais ricos. É o que se passa, por exemplo, com a dívida externa. O valor total da dívida externa dos países da África subsahariana (em milhões de dólares) aumentou entre 1980 e 1995 de 84.119 para 226.483; no mesmo período, e em percentagem do PIB, aumentou de 30,6% para 81,3% e, em percentagem de exportações, de 91,7% para 241,7% (World Bank, 1997: 247). No final do séc. XX, a África pagava 1,31 dólar de dívida externa por cada dólar de ajuda internacional que recebia (World Bank, 2000). O Fundo Monetário Internacional tem basicamente funcionado como a instituição que garante que os países pobres, muitos deles cada vez mais pobres e individados, paguem as suas dívidas aos países ricos (Estados, bancos privados, agências multilaterais) nas condições (juros, por exemplo) impostas por estes. Mas as transferências líquidas do Sul para o Norte assumem muitas outras formas como, por exemplo, a "fuga dos cérebros": segundo as Nações Unidas, cerca de 100.000 profissionais indianos imigram para os EUA, o que corresponde a uma perda de 2 biliões de dólares para a Índia (PNUD, 2001: 5).

4. A globalização política e o Estado-nação

A nova divisão internacional do trabalho, conjugada com a nova economia política "pró-mercado", trouxe também algumas importantes mudanças para o sistema interestatal, a forma política do sistema mundial moderno. Por um lado, os Estados hegemónicos, por eles próprios ou através das instituições internacionais que controlam (em particular as instituições financeiras multilaterais), comprimiram a autonomia política e a soberania efectiva dos Estados periféricos e semiperiféricos com uma intensidade sem precedentes, apesar de a capacidade de resistência e negociação por parte destes últimos poder variar imenso.[5]Por outro lado, acentuou-se a tendência para os acordos políticos interestatais (União Europeia, NAFTA, Mercosul). No caso da União Europeia, esses acordos evoluíram para formas de soberania conjunta ou partilhada. Por último, ainda que não menos importante, o Estado-nação parece ter perdido a sua centralidade tradicional enquanto unidade privilegiada de iniciativa económica, social e política. A intensificação de interacções que atravessam as fronteiras e as práticas transnacionais corroem a capacidade do Estado-nação para conduzir ou controlar fluxos de pessoas, bens, capital ou ideias, como o fez no passado.

O impacto do contexto internacional na regulação do Estado-nação, mais do que um fenómeno novo, é inerente ao sistema interestatal moderno e está inscrito no próprio Tratado de Westphalia (1648) que o constitui. Também não é novo o facto de o contexto internacional tendencialmente exercer uma influência particularmente forte no campo da regulação jurídica da economia, como o testemunham os vários projectos de modelização e unificação do direito económico desenvolvidos ao longo do século XX, por especialistas de direito comparado e concretizados por organizações internacionais e governos nacionais. Como os próprios nomes dos projectos indicam, a pressão internacional tem sido, tradicionalmente, no sentido da uniformização e da normalização, o que é bem ilustrado pelos projectos pioneiros de Ernest Rabel, em inícios da década de 30, e pela constituição do Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) com o objectivo de unificar o direito dos contratos internacionais, o que conduziu, por exemplo, à lei uniformizada na formação de contratos de vendas internacionais (ULFIS, 1964) e a Convenção na venda internacional de bens (CISG, 1980) (van der Velden, 1984: 233).

A tradição da globalização é para alguns muito mais longa. Por exemplo, Tilly distingue quatro ondas de globalização no passado milénio: nos séculos XIII, XVI, XIX e no final do século XX (1995). Apesar desta tradição histórica, o impacto actual da globalização na regulação estatal parece ser um fenómeno qualitativamente novo, por duas razões principais. Em primeiro lugar, é um fenómeno muito amplo e vasto que cobre um campo muito grande de intervenção estatal e que requer mudanças drásticas no padrão de intervenção. Para Tilly, o que distingue a actual onda de globalização da onda que ocorreu no século XIX é o facto de esta última ter contribuído para o fortalecimento do poder dos Estados centrais (Ocidentais), enquanto a actual globalização produz o enfraquecimento dos poderes do Estado. A pressão sobre os Estados é agora relativamente monolítica - o "Consenso de Washington" - e em seus termos o modelo de desenvolvimento orientado para o mercado é o único modelo compatível com o novo regime global de acumulação, sendo, por isso, necessário impor, à escala mundial, políticas de ajustamento estrutural. Esta pressão central opera e reforça-se em articulações com fenómenos e desenvolvimentos tão díspares como o fim da guerra fria, as inovações dramáticas nas tecnologias de comunicação e de informação, os novos sistemas de produção flexível, a emergência de blocos regionais, a proclamação da democracia liberal como regime político universal, a imposição global do mesmo modelo de lei de protecção da propriedade intelectual, etc.

Quando comparado com os processos de transnacionalização precedentes, o alcance destas pressões torna-se particularmente visível uma vez que estas ocorrem após décadas de intensa regulação estatal da economia, tanto nos países centrais, como nos países periféricos e semiperiféricos. A criação de requisitos normativos e institucionais para as operações do modelo de desenvolvimento neoliberal envolve, por isso, uma destruição institucional e normativa de tal modo maciça que afecta, muito para além do papel do Estado na economia, a legitimidade global do Estado para organizar a sociedade.

O segundo factor de novidade da globalização política actual é que as assimetrias do poder transnacional entre o centro e a periferia do sistema mundial, i.e., entre o Norte e o Sul, são hoje mais dramáticas do que nunca. De facto, a soberania dos Estados mais fracos está agora directamente ameaçada, não tanto pelos Estados mais poderosos, como costumava ocorrer, mas sobretudo por agências financeiras internacionais e outros actores transnacionais privados, tais como as empresas multinacionais. A pressão é, assim, apoiada por uma coligação transnacional relativamente coesa, utilizando recursos poderosos e mundiais.

Tendo em mente a situação na Europa e na América do Norte, Bob Jessop identifica três tendências gerais na transformação do poder do Estado. Em primeiro lugar, a desnacionalização do Estado, um certo esvaziamento do aparelho do Estado nacional que decorre do facto de as velhas e novas capacidades do Estado estarem a ser reorganizadas, tanto territorial como funcionalmente, aos níveis subnacional e supranacional. Em segundo lugar, a de-estatização dos regimes políticos reflectida na transição do conceito de governo (government) para o de governação (governance), ou seja, de um modelo de regulação social e económica assente no papel central do Estado para um outro assente em parcerias e outras formas de associação entre organizações governamentais, para-governamentais e não-governamentais, nas quais o aparelho de Estado tem apenas tarefas de coordenação enquanto primus inter pares. E, finalmente, uma tendência para a internacionalização do Estado nacional expressa no aumento do impacto estratégico do contexto internacional na actuação do Estado, o que pode envolver a expansão do campo de acção do Estado nacional sempre que for necessário adequar as condições internas às exigências extra-territoriais ou transnacionais (Jessop, 1995:2).

Apesar de não se esgotar nele, é no campo da economia que a transnacionalização da regulação estatal adquire uma maior saliência. No que respeita aos países periféricos e semiperiféricos, as políticas de "ajustamento estrutural" e de "estabilização macroeconómica" - impostas como condição para a renegociação da dívida externa - cobrem um enorme campo de intervenção económica, provocando enorme turbulência no contrato social, nos quadros legais e nas molduras institucionais: a liberalização dos mercados; a privatização das indústrias e serviços; a desactivação das agências regulatórias e de licenciamento; a desregulação do mercado de trabalho e a "flexibilização" da relação salarial; a redução e a privatização, pelo menos parcial, dos serviços de bem estar social (privatização dos sistemas de pensões, partilha dos custos dos serviços sociais por parte dos utentes, critérios mais restritos de elegibilidade para prestações de assistência social, expansão do chamado terceiro sector, o sector privado não lucrativo, criação de mercados no interior do próprio Estado, como, por exemplo, a competição mercantil entre hospitais públicos); uma menor preocupação com temas ambientais; as reformas educacionais dirigidas para a formação profissional mais do que para a construção de cidadania; etc. Todas estas exigências do "Consenso de Washington" exigem mudanças legais e institucionais maciças. Dado que estas mudanças têm lugar no fim de um período mais ou menos longo de intervenção estatal na vida económica e social (não obstante as diferenças consideráveis no interior do sistema mundial), o retraimento do Estado não pode ser obtido senão através da forte intervenção estatal. O Estado tem de intervir para deixar de intervir, ou seja, tem de regular a sua própria desregulação.

Uma análise mais aprofundada dos traços dominantes da globalização política - que são, de facto, os traços da globalização política dominante - leva-nos a concluir que subjazem a esta três componentes do Consenso de Washington: o consenso do Estado fraco; o consenso da democracia liberal; o consenso do primado do direito e do sistema judicial.

O consenso do Estado fraco é, sem dúvida, o mais central e dele há ampla prova no que ficou descrito acima. Na sua base está a ideia de que o Estado é o oposto da sociedade civil e potencialmente o seu inimigo. A economia neoliberal necessita de uma sociedade civil forte e para que ela exista é necessário que o Estado seja fraco. O Estado é inerentemente opressivo e limitativo da sociedade civil, pelo que só reduzindo o seu tamanho é possível reduzir o seu dano e fortalecer a sociedade civil. Daí que o Estado fraco seja também tendencialmente o Estado mínimo. Esta ideia fora inicialmente defendida pela teoria política liberal, mas foi gradualmente abandonada à medida que o capitalismo nacional, enquanto relação social e política, foi exigindo maior intervenção estatal. Deste modo, a ideia do Estado como oposto da sociedade civil foi substituída pela ideia do Estado como espelho da sociedade civil. A partir de então um Estado forte passou a ser a condição de uma sociedade civil forte. O consenso do Estado fraco visa repor a ideia liberal original.

Esta reposição tem-se revelado extremamente complexa e contraditória e, talvez por isso, o consenso do Estado fraco é, de todos os consensos neoliberais, o mais frágil e mais sujeito a correcções. É que o "encolhimento" do Estado - produzido pelos mecanismos conhecidos, tais como a desregulação, as privatizações e a redução dos serviços públicos - ocorre no final de um período de cerca de cento e cinquenta anos de constante expansão regulatória do Estado. Assim, como referi atrás, desregular implica uma intensa actividade regulatória do Estado para pôr fim à regulação estatal anterior e criar as normas e as instituições que presidirão ao novo modelo de regulação social. Ora tal actividade só pode ser levada a cabo por um Estado eficaz e relativamente forte. Tal como o Estado tem de intervir para deixar de intervir, também só um Estado forte pode produzir com eficácia a sua fraqueza. Esta antinomia foi responsável pelo fracasso da estratégia dos USAID e do Banco Mundial para a reforma política do Estado russo depois do colapso do comunismo. Tais reformas assentaram no desmantelamento quase total do Estado soviético na expectativa de que dos seus escombros emergisse um Estado fraco e, consequentemente, uma sociedade civil forte. Para surpresa dos progenitores, o que emergiu destas reformas foi um governo de mafias ( Hendley , 1995). Talvez por isso o consenso do Estado fraco foi o que mais cedo deu sinais de fragilização, como bem demonstra o relatório do Banco Mundial de 1997, dedicado ao Estado e no qual se reabilita a ideia de regulação estatal e se põe o acento tónico na eficácia da acção estatal (Banco Mundial, 1997).

O consenso da democracia liberalvisa dar forma política ao Estado fraco, mais uma vez recorrendo à teoria política liberal que particularmente nos seus primórdios defendera a convergência necessária entre liberdade política e liberdade económica, as eleições livres e os mercados livres como os dois lados da mesma moeda: o bem comum obtível através das acções de indivíduos utilitaristas envolvidos em trocas competitivas com o mínimo de interferência estatal. A imposição global deste consenso hegemónico tem criado muitos problemas quanto mais não seja porque se trata de um modelo monolítico a ser aplicado em sociedades e realidades muito distintas. Por essa razão, o modelo de democracia adoptado como condicionalidade política da ajuda e do financiamento internacional tende a converter-se numa versão abreviada, senão mesmo caricatural, da democracia liberal. Para constatar isto mesmo, basta comparar a realidade política dos países sujeitos às condicionalidades do Banco Mundial e as características da democracia liberal, tal como são descritas por David Held : o governo eleito; eleições livres e justas em que o voto de todos os cidadãos têm o mesmo peso; um sufrágio que abrange todos os cidadãos independentemente de distinções de raça, religião, classe, sexo, etc.; liberdade de consciência, informação e expressão em todos os assuntos públicos definidos como tal com amplitude; o direito de todos os adultos a opor-se ao governo e serem elegíveis; liberdade de associação e autonomia associativa entendida como o direito a criar associações independentes, incluindo movimentos sociais, grupos de interesse e partidos políticos (1993: 21). Claro que a ironia desta enumeração é que, à luz dela, as democracias reais dos países hegemónicos, se não são versões caricaturais, são pelo menos versões abreviadas do modelo de democracia liberal.

O consenso sobre o primado do direito e do sistema judicial é uma das componentes essenciais da nova forma política do Estado e é também o que melhor procura vincular a globalização política à globalização económica. O modelo de desenvolvimento caucionado pelo Consenso de Washington reclama um novo quadro legal que seja adequado à liberalização dos mercados, dos investimentos e do sistema financeiro. Num modelo assente nas privatizações, na iniciativa privada e na primazia dos mercados o princípio da ordem, da previsibilidade e da confiança não pode vir do comando do Estado. Só pode vir do direito e do sistema judicial, um conjunto de instituições independentes e universais que criam expectativas normativamente fundadas e resolvem litígios em função de quadros legais presumivelmente conhecidos de todos. A proeminência da propriedade individual e dos contratos reforça ainda mais o primado do direito. Por outro lado, a expansão do consumo, que é o motor da globalização económica, não é possível sem a institucionalização e popularização do crédito ao consumo e este não é possível sem a ameaça credível de que quem não pagar será sancionado por isso, o que, por sua vez, só é possível na medida em que existir um sistema judicial eficaz.

Nos termos do Consenso de Washington, a responsabilidade central do Estado consiste em criar o quadro legal e dar condições de efectivo funcionamento às instituições jurídicas e judiciais que tornarão possível o fluir rotineiro das infinitas interacções entre os cidadãos, os agentes económicos e o próprio Estado.

Um outro tema importante nas análises das dimensões políticas da globalização é o papel crescente das formas de governo supraestatal, ou seja, das instituições políticas internacionais, das agências financeiras multilaterais, dos blocos político-económicos supranacionais, dos Think Tanks globais, das diferentes formas de direito global (da nova lex mercatoria aos direitos humanos). Também neste caso o fenómeno não é novo uma vez que o sistema interestatal em que temos vivido desde o século XVII promoveu, sobretudo a partir do século XIX, consensos normativos internacionais que se vieram a traduzir em organizações internacionais. Então, como hoje, essas organizações têm funcionado como condomínios entre os países centrais. O que é novo é a amplitude e o poder da institucionalidade transnacional que se tem vindo a constituir nas últimas três décadas. Este é um dos sentidos em que se tem falado da emergência de um "governo global" (" global governance ") (Murphy, 1994). O outro sentido, mais prospectivo e utópico, diz respeito à indagação sobre as instituições políticas transnacionais que hão-de corresponder no futuro à globalização económica e social em curso ( Falk , 1995; Chase-Dunn et al, 1998). Fala-se mesmo da necessidade de se pensar num "Estado mundial" ou numa "federação mundial", democraticamente controlada e com a função de resolver pacificamente os conflitos entre estados e entre agentes globais. Alguns autores transpõem para o novo campo da globalização os conflitos estruturais do período anterior e imaginam as contrapartidas políticas a que devem dar azo. Tal como a classe capitalista global está a tentar formar o seu estado global, de que a Organização Mundial do Comércio é a guarda avançada, as forças socialistas devem criar um "partido mundial" ao serviço de uma "comunidade socialista global" ou uma "comunidade democrática global" baseada na racionalidade colectiva, na liberdade e na igualdade (Chase-Dunn et al, 1998).

5. Globalização cultural ou cultura global?

A globalização cultural assumiu um relevo especial com a chamada "viragem cultural" da década de oitenta, ou seja, com a mudança de ênfase, nas ciências sociais, dos fenómenos sócio-económicos para os fenómenos culturais. A "viragem cultural" veio reacender a questão da primazia causal na explicação da vida social e, com ela, a questão do impacto da globalização cultural.[6] A questão consiste em saber se as dimensões normativa e cultural do processo de globalização desempenham um papel primário ou secundário. Enquanto para alguns elas têm um papel secundário, dado que a economia mundial capitalista é mais integrada pelo poder político-militar e pela interdependência de mercado do que pelo consenso normativo e cultural (Chase-Dunn, 1991: 88), para outros o poder político, a dominação cultural e os valores e normas institucionalizadas precedem a dependência de mercado no desenvolvimento do sistema mundial e na estabilidade do sistema interestatal ( Meyer , 1987; Bergesen , 1990). Wallerstein faz uma leitura sociológica deste debate, defendendo que "não é por acaso... que tem havido tanta discussão nestes últimos dez-quinze anos acerca do problema da cultura. Isso é decorrente da decomposição da dupla crença do século dezanove nas arenas económica e política como lugares de progresso social e, consequentemente, de salvação individual" (Wallerstein, 1991a: 198).

Embora a questão da matriz original da globalização se ponha em relação a cada uma das dimensões da globalização, é no domínio da globalização cultural que ela se põe com mais acuidade ou com mais frequência. A questão é de saber se o que se designa por globalização não deveria ser mais correctamente designado por ocidentalização ou americanização (Ritzer, 1995), já que os valores, os artefactos culturais e os universos simbólicos que se globalizam são ocidentais e, por vezes, especificamente norte-americanos, sejam eles o individualismo, a democracia política, a racionalidade económica, o utilitarismo, o primado do direito, o cinema, a publicidade, a televisão, a internet, etc.

Neste contexto, os meios de comunicação electrónicos, especialmente a televisão, têm sido um dos grandes temas de debate. Embora a importância da globalização dos meios de comunicação social seja salientada por todos, nem todos retiram dela as mesmas consequências. Appadurai, por exemplo, vê nela um dos dois factores (o outro são as migrações em massa) responsáveis pela ruptura entre o período de que acabamos de sair (o mundo da modernização) e o período em que estamos a entrar (o mundo pós-electrónico) (1997). O novo período distingue-se pelo "trabalho da imaginação" pelo facto de a imaginação se ter transformado num facto social, colectivo, o ter deixado de estar confinada no indivíduo romântico e no espaço expressivo da arte, do mito e do ritual para passar a fazer parte da vida quotidiana dos cidadãos comuns (1997: 5). A imaginação pós-electrónica, combinada com a desterritorialização provocada pelas migrações, torna possível a criação de universos simbólicos transnacionais, "comunidades de sentimento", identidades prospectivas, partilhas de gostos, prazeres e aspirações, em suma, o que Appadurai chama "esferas públicas diaspóricas" (1997: 4). De uma outra perspectiva, Octávio Ianni fala do "príncipe electrónico" - o conjunto das tecnologias electrónicas, informáticas e cibernéticas, de informação e de comunicação, com destaque para a televisão - que se transformou no "arquitecto da ágora electrónica na qual todos estão representados, reflectidos, defletidos ou figurados, sem o risco da convivência nem da experiência" (1998: 17).

Esta temática articula-se com uma outra igualmente central no âmbito da globalização cultural: o de saber até que ponto a globalização acarreta homogeneização. Se para alguns autores a especificidade das culturas locais e nacionais está em risco ( Ritzer , 1995), para outros, a globalização tanto produz homogeneização como diversidade ( Robertson e Khondker , 1998). O isomorfismo institucional, sobretudo nos domínios económico e político coexiste com a afirmação de diferenças e de particularismo. Para Friedman, a fragmentação cultural e étnica, por um lado, e a homogeneização modernista, por outro, não são duas perspectivas opostas sobre o que está a acontecer, mas antes duas tendências, ambas constitutivas da realidade global (Featherston, 1990: 311). Do mesmo modo, Appadurai faz questão de salientar que os media electrónicos, longe de serem o ópio do povo, são processados pelos indivíduos e pelos grupos de uma maneira activa, um campo fértil para exercícios de resistência, selectividade e ironia (1997: 7). Appadurai tem vindo a salientar o crescente papel da imaginação na vida social dominada pela globalização. É através da imaginação que os cidadãos são disciplinados e controlados pelos Estados, mercados e os outros interesses dominantes, mas é também da imaginação que os cidadãos desenvolvem sistemas colectivos de dissidência e novos grafismos da vida colectiva (1999: 230).

O que não fica claro nestes posicionamentos é a elucidação das relações sociais de poder que presidem à produção tanto de homogeneização como de diferenciação. Sem tal elucidação, estes dois "resultados" da globalização são postos no mesmo pé, sem que se conheçam as vinculações e a hierarquia entre eles. Esta elucidação é particularmente útil para analisar criticamente os processos de hibridização ou de crioulização que resultam do confronto ou da coabitação entre tendências homogeneizantes e tendências particularizantes (Hall e McGrew, 1992). Segundo Appadurai, "a característica central da cultura global é hoje a política do esforço mútuo da mesmidade e da diferença para se canibalizarem uma à outra e assim proclamarem o êxito do sequestro as duas ideias gémeas do Iluminismo, o universal triunfante e particular resistente" (1997: 43).

Um outro tema central na discussão sobre as dimensões culturais da globalização - relacionado, aliás, com o debate anterior - diz respeito à questão de saber se terá emergido nas décadas mais recentes uma cultura global (Featherstone, 1990; Waters, 1995). É há muito reconhecido que, pelo menos desde o século XVI, a hegemonia ideológica da ciência, da economia, da política e da religião europeias produziu, através do imperialismo cultural, alguns isomorfismos entre as diferentes culturas nacionais do sistema mundial. A questão é, agora, de saber se, para além disso, certas formas culturais terão emergido nas décadas mais recentes, que são originalmente transnacionais ou cujas origens nacionais são relativamente irrelevantes pelo facto de circularem pelo mundo mais ou menos desenraizadas das culturas nacionais. Tais formas culturais são identificadas por Appadurai como mediascapes e ideoscapes (1990), por Leslie Sklair (1991) como cultura-ideologia do consumismo, por Anthony Smith como um novo imperialismo cultural (1990). De uma outra perspectiva, a teoria dos regimes internacionais tem vindo a canalizar a nossa atenção para os processos de formação de consenso ao nível mundial e para a emergência de uma ordem normativa global ( Keohane e Nye , 1977; Keohane, 1985; Krasner , 1983; Haggard e Simmons , 1987). E ainda de outra perspectiva, a teoria da estrutura internacional acentua a forma como a cultura ocidental tem criado actores sociais e significados culturais por todo o mundo (Thomas et al, 1987).

A ideia de uma cultura global é, claramente, um dos principais projectos da modernidade. Como Stephen Toulmin brilhantemente demonstrou (1990), pode ser identificado desde Leibniz até Hegel e desde o século XVII até ao nosso século. A atenção sociológica concedida a esta ideia nas últimas três décadas tem, contudo, uma base empírica específica. Acredita-se que a intensificação dramática de fluxos transfronteiriços de bens, capital, trabalho, pessoas, ideias e informação originou convergências, isomorfismos e hibridizações entre as diferentes culturas nacionais, sejam elas estilos arquitectónicos, moda, hábitos alimentares ou consumo cultural de massas. Contudo, a maior parte dos autores sustenta que, apesar da sua importância, estes processos estão longe de conduzirem a uma cultura global.

A cultura é por definição um processo social construído sobre a intersecção entre o universal e o particular. Como salienta Wallerstein, "definir uma cultura é uma questão de definir fronteiras" (1991a: 187). De modo convergente, Appadurai afirma que o cultural é o campo das diferenças, dos contrastes e das comparações (1997: 12). Poderíamos até afirmar que a cultura é, em sua definição mais simples, a luta contra a uniformidade. Os poderosos e envolventes processos de difusão e imposição de culturas, imperialisticamente definidos como universais, têm sido confrontados, em todo o sistema mundial, por múltiplos e engenhosos processos de resistência, identificação e indigenização culturais. Todavia, o tópico da cultura global tem tido o mérito de mostrar que a luta política em redor da homogeneização e da uniformização culturais transcendeu a configuração territorial em que teve lugar desde o século XIX até muito recentemente, isto é, o Estado-nação.

A este respeito, os Estados-nação têm tradicionalmente desempenhado um papel algo ambíguo. Enquanto, externamente, têm sido os arautos da diversidade cultural, da autenticidade da cultura nacional, internamente, têm promovido a homogeneização e a uniformidade, esmagando a rica variedade de culturas locais existentes no território nacional, através do poder da polícia, do direito, do sistema educacional ou dos meios de comunicação social, e na maior parte das vezes por todos eles em conjunto. Este papel tem sido desempenhado com intensidade e eficácia muito variadas nos Estados centrais, periféricos e semiperiféricos e pode estar agora a mudar como parte das transformações em curso na capacidade regulatória dos Estados-nação.

Sob as condições da economia mundial capitalista e do sistema interestatal moderno, parece haver apenas espaço para as culturas globais parciais. Parcial, quer em termos dos aspectos da vida social que cobrem, quer das regiões do mundo que abrangem. Smith, por exemplo, fala de uma "família de culturas" europeia, que consiste em motivos e tradições políticas e culturais abrangentes e transnacionais (o direito romano, o humanismo renascentista, o racionalismo iluminista, o romantismo e a democracia), "que emergiram em diversas partes do continente em diferentes períodos, continuando em alguns casos a emergir, criando ou recriando sentimentos de reconhecimento e parentesco entre os povos da Europa" (1990: 187). Vista de fora da Europa, particularmente a partir de regiões e de povos intensivamente colonizados pelos europeus, esta família de culturas é a versão quintessencial do imperialismo ocidental em nome do qual muita da tradição e da identidade cultural foi destruída.

Dada a natureza hierárquica do sistema mundial, torna-se crucial identificar os grupos, as classes, os interesses e os Estados que definem as culturas parciais enquanto culturas globais, e que, por essa via, controlam a agenda da dominação política sob o disfarce da globalização cultural. Se é verdade que a intensificação dos contactos e da interdependência transfronteiriços abriu novas oportunidades para o exercício da tolerância, do ecumenismo, da solidariedade e do cosmopolitismo, não é menos verdade que, simultaneamente, têm surgido novas formas e manifestações de intolerância, chauvinismo, de racismo, de xenofobia e, em última instância, de imperialismo. As culturas globais parciais podem, desta forma, ter naturezas, alcances e perfis políticos muito diferentes.

Nas actuais circunstâncias, só é possível visualizar culturas globais pluralistas ou plurais.[7]É por isso que a maior parte dos autores assume uma postura prescritiva ou prospectiva sempre que fala de cultura global no singular. Para Hannerz, o cosmopolitismo "inclui uma postura favorável à coexistência de culturas distintas na experiência individual... uma orientação, uma vontade de interagir com o Outro... uma postura estética e intelectual de abertura face a experiências culturais divergentes" (1990: 239). Chase-Dunn, por seu lado, enquanto retira do pedestal o "universalismo normativo" de Parsons (1971) como um traço essencial do sistema capitalista mundial vigente, propõe que tal universalismo seja transposto para "um novo nível de sentido socialista, embora sensível às virtudes do pluralismo nacional e étnico" (1991: 105; Chase-Dunn et al, 1998). Por fim, Wallerstein imagina uma cultura mundial somente num mundo libertário-igualitário futuro, mas mesmo aí haveria um lugar reservado para a resistência cultural: a criação e a recriação constantes de entidades culturais particularistas "cujos objectos (reconhecidos ou não) seriam a restauração da realidade universal de liberdade e igualdade" (1991a: 199).

No domínio cultural, o consenso neoliberal é muito selectivo. Os fenómenos culturais só lhe interessam na medida em que se tornam mercadorias que como tal devem seguir o trilho da globalização económica. Assim, o consenso diz, sobretudo, respeito aos suportes técnicos e jurídicos da produção e circulação dos produtos das indústrias culturais como, por exemplo, as tecnologias de comunicação e da informação e os direitos de propriedade intelectual.

6. A natureza das globalizações

A referência feita nas secções anteriores às facetas dominantes do que usualmente se designa por globalização, além de ser omissa a respeito da teoria da globalização que lhe subjaz, pode dar a ideia falsa de que a globalização é um fenómeno linear, monolítico e inequívoco. Esta ideia da globalização, apesar de falsa, é hoje prevalecente e tende a sê-lo tanto mais quanto a globalização extravasa do discurso científico para o discurso político e para a linguagem comum. Aparentemente transparente e sem complexidade, a ideia de globalização obscurece mais do que esclarece o que se passa no mundo. E o que obscurece ou oculta é, quando visto de outra perspectiva, tão importante que a transparência e simplicidade da ideia de globalização, longe de serem inocentes, devem ser considerados dispositivos ideológicos e políticos dotados de intencionalidades específicas. Duas dessas intencionalidades devem ser salientadas.

A primeira é o que designo por falácia do determinismo. Consiste na inculcação da ideia de que a globalização é um processo espontâneo, automático, inelutável e irreversível que se intensifica e avança segundo uma lógica e uma dinâmica próprias suficientemente fortes para se imporem a qualquer interferência externa. Nesta falácia incorrem não só os embaixadores da globalização como os estudiosos mais circunspectos. Entre estes últimos, saliento Manuel Castells para quem a globalização é o resultado inelutável da revolução nas tecnologias da informação. Segundo ele, a "nova economia é informacional porque a produtividade e competitividade assentam na capacidade para gerar e aplicar eficientemente informação baseada em conhecimento" e é global porque as actividades centrais da produção, da distribuição e do consumo são organizadas à escala mundial (1996: 66). A falácia consiste em transformar as causas da globalização em efeitos da globalização. A globalização resulta, de facto, de um conjunto de decisões políticas identificadas no tempo e na autoria. O Consenso de Washington é uma decisão política dos Estados centrais como são políticas as decisões dos Estados que o adoptaram com mais ou menos autonomia, com mais ou menos selectividade. Não podemos esquecer que, em grande medida, e sobretudo ao nível económico e político, a globalização hegemónica é um produto de decisões dos Estados nacionais. A desregulamentação da economia, por exemplo, tem sido um acto eminentemente político. A prova disso mesmo está na diversidade das respostas dos Estados nacionais às pressões políticas decorrentes do Consenso de Washington.[8] O facto de as decisões políticas terem sido, em geral, convergentes, tomadas durante um período de tempo curto, e de muitos Estados não terem tido alternativa para decidirem de modo diferente, não elimina o carácter político das decisões, apenas desloca o centro e o processo político destas. Igualmente política é reflexão sobre as novas formas de Estado que estão a emergir em resultado da globalização, sobre a nova distribuição política entre práticas nacionais, práticas internacionais e práticas globais, sobre o novo formato das políticas públicas em face da crescente complexidade das questões sociais, ambientais e de redistribuição.

A segunda intencionalidade política do carácter não-político da globalização é a falácia do desaparecimento do Sul. Nos termos desta falácia as relações Norte/Sul nunca constituíram um verdadeiro conflito, mas durante muito tempo os dois pólos das relações foram facilmente identificáveis, já que o Norte produzia produtos manufacturados, enquanto o Sul fornecia matérias primas. A situação começou-se a alterar na década de sessenta (deram conta disso as teorias da dependência ou do desenvolvimento dependente) e transformou-se radicalmente a partir da década de oitenta. Hoje, quer ao nível financeiro, quer ao nível da produção, quer ainda ao nível do consumo, o mundo está integrado numa economia global onde, perante a multiplicidade de interdependências, deixou de fazer sentido distinguir entre Norte e Sul e, aliás, igualmente entre centro, periferia e semiperiferia do sistema mundial. Quanto mais triunfalista é a concepção da globalização menor é a visibilidade do Sul ou das hierarquias do sistema mundial. A ideia é que a globalização está a ter um impacto uniforme em todas as regiões do mundo e em todos os sectores de actividade e que os seus arquitectos, as empresas multinacionais, são infinitamente inovadoras e têm capacidade organizativa suficiente para transformar a nova economia global numa oportunidade sem precedentes.

Mesmo os autores que reconhecem que a globalização é altamente selectiva, produz assimetrias e tem uma geometria variável, tendem a pensar que ela desestruturou as hierarquias da economia mundial anterior. É de novo o caso de Castells para quem a globalização pôs fim à ideia de "Sul" e mesmo à ideia de "Terceiro Mundo", na medida em que é cada vez maior a diferenciação entre países e no interior de países, entre regiões (1996: 92, 112). Segundo ele, a novíssima divisão internacional do trabalho não ocorre entre países, mas entre agentes económicos e entre posições distintas na economia global que competem globalmente, usando a infraestrutura tecnológica da economia informacional e a estrutura organizacional de redes e fluxos (1996: 147). Neste sentido, deixa igualmente de fazer sentido a distinção entre centro, periferia e semiperiferia no sistema mundial. A nova economia é uma economia global distinta da economia-mundo. Enquanto esta última assentava na acumulação de capital, obtida em todo o mundo, a economia global tem a capacidade para funcionar como uma unidade em tempo real e à escala planetária (1996: 92).

Sem querer minimizar a importância das transformações em curso, penso, no entanto, que Castells leva longe demais a imagem da globalização como o bulldozer avassalador contra o qual não há resistência possível, pelo menos a nível económico. E com isso leva longe de mais a ideia da segmentação dos processos de inclusão/exclusão que estão a ocorrer. Em primeiro lugar, é o próprio Castells quem reconhece que os processos de exclusão podem atingir um continente por inteiro (África) e dominar inteiramente sobre os processos de inclusão num subcontinente (a América Latina) (1996: 115-136). Em segundo lugar, mesmo admitindo que a economia global deixou de necessitar dos espaços geo-políticos nacionais para se reproduzir, a verdade é que a dívida externa continua a ser contabilizada e cobrada ao nível de países e é por via dela e da financeirização do sistema económico que os países pobres do mundo se transformaram, a partir da década de oitenta, em contribuintes líquidos para a riqueza dos países ricos. Em terceiro lugar, ao contrário do que se pode depreender do quadro traçado por Castells, a convergência entre países na economia global é tão significativa quanto a divergência e isto é particularmente notório entre os países centrais (Drache, 1999: 15). Porque as políticas de salários e de segurança social continuaram a ser definidas a nível nacional, as medidas de liberalização desde a década de oitenta não reduziram significativamente as diferenças nos custos do trabalho entre os diferentes países. Assim, em 1997, a remuneração média da hora de trabalho na Alemanha (32$ US) era 54% mais elevada que nos EUA (17.19$ US). E mesmo dentro da União Europeia, onde têm estado em curso nas últimas décadas políticas de "integração profunda", as diferenças de produtividade e de custos salariais têm-se mantido com a excepção da Inglaterra, em que os custos salariais foram reduzidos em 40% desde 1980. Tomando a Alemanha Ocidental como termo de comparação (100%), a produtividade do trabalho em Portugal era, em 1998, 34,5% e os custos salariais, 37,4%. Estes números eram para a Espanha, 62% e 66,9%, respectivamente; para a Inglaterra, 71,7% e 68%; e para a Irlanda, 69,5 e 71,8% (Drache, 1999: 24). Por último, é difícil sustentar que a selectividade e a fragmentação excludente da "nova economia" destruiu o conceito de "Sul" quando, como vimos atrás, a disparidade de riqueza entre países pobres e países ricos não cessou de aumentar nos últimos vinte ou trinta anos. É certo que a liberalização dos mercados desestruturou os processos de inclusão e de exclusão nos diferentes países e regiões. Mas o importante é analisar em cada país ou região a ratio entre inclusão e exclusão. É essa ratio que determina se um país pertence ao Sul ou ao Norte, ao centro ou à periferia ou semiperiferia do sistema mundial. Os países onde a integração na economia mundial se processou dominantemente pela exclusão são os países do Sul e da periferia do sistema mundial.

Estas transformações merecem uma atenção detalhada, mas não restam dúvidas de que só as viragens ideológicas que ocorreram na comunidade científica, tanto no Norte como no Sul, podem explicar que as iniquidades e assimetrias no sistema mundial, apesar de terem aumentado, tenham perdido centralidade analítica. Por isso, o "fim do Sul", o "desaparecimento do Terceiro Mundo" são, acima de tudo, um produto das mudanças de "sensibilidade sociológica" que devem ser, elas próprias, objecto de escrutínio. Em alguns autores, o fim do Sul ou do Terceiro Mundo não resulta de análises específicas sobre o Sul ou o Terceiro Mundo, resulta tão-só do "esquecimento" a que estes são votados. A globalização é vista a partir dos países centrais tendo em vista as realidades destes. É assim, muito particularmente, o caso dos autores que se centram na globalização económica.[9] Mas as análises culturalistas incorrem frequentemente no mesmo erro. A título de exemplo, as teorias da reflexividade aplicadas à modernidade, à globalização ou à acumulação (Beck, 1992; Giddens, 1991; Lash e Urry, 1996) e, em particular, a ideia de Giddens de que a globalização é a "modernização reflexiva", esquecem que a grande maioria da população mundial sofre as consequências de uma modernidade ou de uma globalização nada reflexiva ou que a grande maioria dos operários vivem em regimes de acumulação que estão nos antípodas da acumulação reflexiva.

Tanto a falácia do determinismo como a falácia do desaparecimento do Sul têm vindo a perder credibilidade à medida que a globalização se transforma num campo de contestação social e política. Se para alguns ela continua a ser considerada como o grande triunfo da racionalidade, da inovação e da liberdade capaz de produzir progresso infinito e abundância ilimitada, para outros ela é anátema já que no seu bojo transporta a miséria, a marginalização e a exclusão da grande maioria da população mundial, enquanto a retórica do progresso e da abundância se torna em realidade apenas para um clube cada vez mais pequeno de privilegiados. Nestas circunstâncias, não admira que tenham surgido nos últimos anos vários discursos da globalização. Robertson (1998), por exemplo, distingue quatro grandes discursos da globalização. O discurso regional, como, por exemplo, o discurso asiático, o discurso europeu ocidental, ou o discurso latino-americano, tem uma tonalidade civilizacional, sendo a globalização posta em confronto com as especificidades regionais. Dentro da mesma região, pode haver diferentes subdiscursos. Por exemplo, em França há uma forte tendência para ver na globalização uma ameaça "anglo-americana" à sociedade e à cultura francesa e às de outros países europeus. Mas, como diz Robertson, o anti-globalismo dos franceses pode facilmente converter-se no projecto francês de globalização. O discurso disciplinar diz respeito ao modo como a globalização é vista pelas diferentes ciências sociais. O traço mais saliente deste discurso é a saliência que é dada à globalização económica. O discurso ideológicoentrecruza-se com qualquer dos anteriores e diz respeito à avaliação política dos processos de globalização. Ao discurso pro-globalização contrapõe-se o discurso anti-globalização e em qualquer deles é possível distinguir posições de esquerda e de direita. Finalmente, o discurso feminista que, tendo começado por ser um discurso anti-globalização - privilegiando o local e atribuindo o global a uma preocupação masculina -, é hoje também um discurso da globalização e distingue-se pela ênfase dada aos aspectos comunitários da globalização.

A pluralidade de discursos sobre a globalização mostra que é imperioso produzir uma reflexão teórica crítica da globalização e de o fazer de modo a captar a complexidade dos fenómenos que ela envolve e a disparidade dos interesses que neles se confrontam. A proposta teórica que apresento aqui parte de três aparentes contradições que, em meu entender, conferem ao período histórico, em que nos encontramos, a sua especificidade transicional. A primeira contradição é entre globalização e localização. O tempo presente surge-nos como dominado por um movimento dialéctico em cujo seio os processos de globalização ocorrem de par com processos de localização. De facto, à medida que a interdependência e as interacções globais se intensificam, as relações sociais em geral parecem estar cada vez mais desterritorializadas, abrindo caminho para novos direitos às opções, que atravessam fronteiras até há pouco tempo policiadas pela tradição, pelo nacionalismo, pela linguagem ou pela ideologia, e frequentemente por todos eles em conjunto. Mas, por outro lado, e em aparente contradição com esta tendência, novas identidades regionais, nacionais e locais estão a emergir, construídas em torno de uma nova proeminência dos direitos às raízes. Tais localismos, tanto se referem a territórios reais ou imaginados, como a formas de vida e de sociabilidade assentes nas relações face-a-face, na proximidade e na interactividade.

Localismos territorializados são, por exemplo, os protagonizados por povos que, ao fim de séculos de genocídio e de opressão cultural, reivindicam, finalmente com algum êxito, o direito à autodeterminação dentro dos seus territórios ancestrais. É este o caso dos povos indígenas da América Latina e também da Austrália, do Canadá e da Nova Zelândia. Por seu lado, os localismos translocalizados são protagonizados por grupos sociais translocalizados, tais como os imigrantes árabes em Paris ou Londres, os imigrantes turcos na Alemanha ou os imigrantes latinos nos EUA. Para estes grupos, o território é a ideia de território, enquanto forma de vida em escala de proximidade, imediação, pertença, partilha e reciprocidade. Aliás, esta reterritorialização, que usualmente ocorre a um nível infra-estatal, pode também ocorrer a um nível supra-estatal. Um bom exemplo deste último processo é a União Europeia, que, ao mesmo tempo que desterritorializa as relações sociais entre os cidadãos dos Estados membros, reterritorializa as relações sociais com Estados terceiros (a "Europa-fortaleza").

A segunda contradição é entre o Estado-nação e o não-Estado transnacional. A análise precedente sobre as diferentes dimensões da globalização dominante mostrou que um dos pontos de maior controvérsia, nos debates sobre a globalização, é a questão do papel do Estado na era da globalização. Se, para uns, o Estado é uma entidade obsoleta e em vias de extinção ou, em qualquer caso, muito fragilizada na sua capacidade para organizar e regular a vida social, para outros, o Estado continua a ser a entidade política central, não só porque a erosão da soberania é muito selectiva, como, sobretudo, porque a própria institucionalidade da globalização - das agências financeiras multilaterais à desregulação da economia - é criada pelos Estados nacionais. Cada uma destas posições capta uma parte dos processos em curso. Nenhuma delas, porém, faz justiça às transformações no seu conjunto porque estas são, de facto, contraditórias e incluem tanto processos de estatização - a tal ponto que se pode afirmar que os Estados nunca foram tão importantes como hoje - como processos de desestatização em que interacções, redes e fluxos transnacionais da maior importância ocorrem sem qualquer interferência significativa do Estado, ao contrário do que sucedia no período anterior.

A terceira contradição, de natureza político-ideológica, é entre os que vêem na globalização a energia finalmente incontestável e imbatível do capitalismo e os que vêem nela uma oportunidade nova para ampliar a escala e o âmbito da solidariedade transnacional e das lutas anticapitalistas. A primeira posição é, aliás, defendida, tanto pelos que conduzem a globalização e dela beneficiam, como por aqueles para quem a globalização é a mais recente e a mais virulenta agressão externa contra os seus modos de vida e o seu bem estar.

Estas três contradições condensam os vectores mais importantes dos processos de globalização em curso. À luz delas, é fácil ver que as disjunções, as ocorrências paralelas e as confrontações são de tal modo significativas que o que designamos por globalização é, de facto, uma constelação de diferentes processos de globalização e, em última instância, de diferentes e, por vezes, contraditórias, globalizações.

Aquilo que habitualmente designamos por globalização são, de facto, conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações sociais dão origem a diferentes fenómenos de globalização. Nestes termos, não existe estritamente uma entidade única chamada globalização; existem, em vez disso, globalizações; em rigor, este termo só deveria ser usado no plural. Qualquer conceito mais abrangente deve ser de tipo processual e não substantivo. Por outro lado, enquanto feixes de relações sociais, as globalizações envolvem conflitos e, por isso, vencedores e vencidos. Frequentemente, o discurso sobre globalização é a história dos vencedores contada pelos próprios. Na verdade, a vitória é aparentemente tão absoluta que os derrotados acabam por desaparecer totalmente de cena. Por isso, é errado pensar que as novas e mais intensas interacções transnacionais produzidas pelos processos de globalização eliminaram as hierarquias no sistema mundial. Sem dúvida que as têm vindo a transformar profundamente, mas isso não significa que as tenham eliminado. Pelo contrário, a prova empírica vai no sentido oposto, no sentido da intensificação das hierarquias e das desigualdades. As contradições e disjunções acima assinaladas sugerem que estamos num período transicional no que respeita a três dimensões principais: transição no sistema de hierarquias e desigualdades do sistema mundial; transição no formato institucional e na complementaridade entre instituições; transição na escala e na configuração dos conflitos sociais e políticos.

A teoria a construir deve, pois, dar conta da pluralidade e da contradição dos processos da globalização em vez de os tentar subsumir em abstracções redutoras. A teoria que a seguir proponho assenta no conceito de sistema mundial em transição. Em transição porque contém em si o sistema mundial velho, em processo de profunda transformação, e um conjunto de realidades emergentes que podem ou não conduzir a um novo sistema mundial, ou a outra qualquer entidade nova, sistémica ou não. Trata-se de uma circunstância que, quando captada em corte sincrónico, revela uma total abertura quanto a possíveis alternativas de evolução. Tal abertura é o sintoma de uma grande instabilidade que configura uma situação de bifurcação, entendida em sentido prigoginiano. É uma situação de profundos desequilíbrios e de compromissos voláteis em que pequenas alterações podem produzir grandes transformações. Trata-se, pois, de uma situação caracterizada pela turbulência e pela explosão das escalas.[10] A teoria que aqui proponho pretende dar conta da situação de bifurcação e, como tal, não pode deixar de ser, ela própria, uma teoria aberta às possibilidades de caos.

O sistema mundial em transição é constituído por três constelações de práticas colectivas: a constelação de práticas interestatais, a constelação de práticas capitalistas globais e a constelação de práticas sociais e culturais transnacionais. As práticas interestatais correspondem ao papel dos Estados no sistema mundial moderno enquanto protagonistas da divisão internacional do trabalho no seio do qual se estabelece a hierarquia entre centro, periferia e semiperiferia. As práticas capitalistas globais são as práticas dos agentes económicos cuja unidade espácio-temporal de actuação real ou potencial é o planeta. As práticas sociais e culturais transnacionais são os fluxos transfronteiriços de pessoas e de culturas, de informação e de comunicação. Cada uma destas constelações de práticas é constituída por: um conjunto de instituições que asseguram a sua reprodução, a complementaridade entre elas e a estabilidade das desigualdades que elas produzem; uma forma de poder que fornece a lógica das interacções e legitima as desigualdades e as hierarquias; uma forma de direito que fornece a linguagem das relações intrainstitucionais e interinstitucionais e o critério da divisão entre práticas permitidas e proibidas; um conflito estrutural que condensa as tensões e contradições matriciais das práticas em questão; um critério de hierarquização que define o modo como se cristalizam as desigualdades de poder e os conflitos em que eles se traduzem; finalmente, ainda que todas as práticas do sistema mundial em transição estejam envolvidas em todos os modos de produção de globalização , nem todas estão envolvidas em todos eles com a mesma intensidade.

O quadro nº 1 descreve a composição interna de cada um dos componentes das diferentes constelações de práticas. Detenho-me apenas nos que exigem uma explicação. Antes disso, porém, é necessário identificar o que distingue o sistema mundial em transição (SMET) do sistema mundial moderno (SMM). Em primeiro lugar, enquanto o SMM assenta em dois pilares, a economia-mundo e o sistema interestatal, o SMET assenta em três pilares e nenhum deles tem a consistência de um sistema. Trata-se antes de constelações de práticas cuja coerência interna é intrinsecamente problemática. A maior complexidade (e também incoerência) do sistema mundial em transição reside em que nele os processos da globalização vão muito para além dos Estados e da economia, envolvendo práticas sociais e culturais que no SMM estavam confinadas aos Estados e sociedades nacionais ou sub-unidades deles. Aliás, muitas das novas práticas culturais transnacionais são originariamente transnacionais, ou seja, constituem-se livres da referência a uma nação ou a um Estado concretos ou, quando recorrem a eles, fazem-no apenas para obter matéria prima ou infraestrutura local para a produção de transnacionalidade. Em segundo lugar, as interacções entre os pilares do SMET são muito mais intensas que no SMM. Aliás, enquanto no SMM os dois pilares tinham contornos claros e bem distintos, no SMET há uma interpenetração constante e intensa entre as diferentes constelações de práticas, de tal modo que entre elas há zonas cinzentas ou híbridas onde as constelações assumem um carácter particularmente compósito. Por exemplo, a Organização Mundial do Comércio é uma instituição híbrida constituída por práticas interestatais e por práticas capitalistas globais do mesmo modo que os fluxos migratórios são uma instituição híbrida onde, em graus diferentes, consoante as situações, estão presentes as três constelações de práticas. Em terceiro lugar, ainda que permaneçam no SMET muitas das instituições centrais do SMM, elas desempenham hoje funções diferentes sem que a sua centralidade seja necessariamente afectada. Assim, o Estado, que no SMM assegurava a integração da economia, da sociedade e da cultura nacionais, contribui hoje activamente para a desintegração da economia, da sociedade e da cultura a nível nacional em nome da integração destas na economia, na sociedade e na cultura globais.

Os processos de globalização resultam das interacções entre as três constelações de práticas. As tensões e contradições, no interior de cada uma das constelações e nas relações entre elas, decorrem das formas de poder e das desigualdades na distribuição do poder. Essa forma de poder é a troca desigual em todas elas, mas assume formas específicas em cada uma das constelações que derivam dos recursos, artefactos, imaginários que são objecto de troca desigual. O aprofundamento e a intensidade das interacções interestatais, globais e transnacionais faz com que as formas de poder se exerçam como trocas desiguais. Porque se trata de trocas e as desigualdades podem, dentro de certos limites, ser ocultadas ou manipuladas, o registo das interacções no SMET assume muitas vezes (e credivelmente) o registo da horizontalidade através de ideias-força como interdependência, complementaridade, coordenação, cooperação, rede, etc. Em face disto, os conflitos tendem a ser experienciados como difusos, sendo por vezes difícil definir o que está em conflito ou quem está em conflito. Mesmo assim é possível identificar em cada constelação de práticas um conflito estrutural, ou seja, um conflito que organiza as lutas em torno dos recursos que são objecto de trocas desiguais. No caso de práticas interestatais, o conflito trava-se em torno da posição relativa na hierarquia do sistema mundial já que é este que dita o tipo de trocas e graus de desigualdades. As lutas pela promoção ou contra a despromoção e os movimentos na hierarquia do sistema mundial em que se traduzem são processos de longa duração que em cada momento se cristalizam em graus de autonomia e de dependência. Ao nível das práticas capitalistas globais, a luta trava-se entre a classe capitalista global e todas as outras classes definidas a nível nacional, sejam elas a burguesia, a pequena burguesia e o operariado. Obviamente, os graus de desigualdade da troca e os mecanismos que as produzem são diferentes consoante as classes em confronto, mas em todos os casos trava-se uma luta pela apropriação ou valorização de recursos mercantis, sejam eles o trabalho ou o conhecimento, a informação ou as matérias primas, o crédito ou a tecnologia. O que resta das burguesias nacionais e a pequena burguesia são, nesta fase de transição, a almofada que amortece e a cortina de fumo que obscurece a contradição cada vez mais nua e crua entre o capital global e o trabalho entretanto transformado em recurso global.

No domínio das práticas sociais e culturais transnacionais, as trocas desiguais dizem respeito a recursos não-mercantis cuja transnacionalidade assenta na diferença local, tais como, etnias, identidades, culturas, tradições, sentimentos de pertença, imaginários, rituais, literatura escrita ou oral. São incontáveis os grupos sociais envolvidos nestas trocas desiguais e as suas lutas travam-se em torno do reconhecimento da apropriação ou da valorização não mercantil desses recursos, ou seja, em torno da igualdade na diferença e da diferença na igualdade.

A interacção recíproca e interpenetração das três constelações de práticas faz com que os três tipos de conflitos estruturais e as trocas desiguais que os alimentam se traduzam na prática em conflitos compósitos, híbridos ou duais em que, de diferentes formas, estão presentes elementos de cada um dos conflitos estruturais. A importância deste facto está no que designo por transconflitualidade, que consiste em assimilar um tipo de conflito a outro e em experienciar um conflito de certo tipo como se ele fosse de outro tipo. Assim, por exemplo, um conflito no interior das práticas capitalistas globais pode ser assimilado a um conflito interestatal e ser vivido como tal pelas partes em conflito. Do mesmo modo, um conflito interestatal pode ser assimilado a um conflito de práticas culturais transnacionais e ser vivido como tal. A transconflitualidade é reveladora da abertura e da situação de bifurcação que caracterizam o SMET porque, à partida, não é possível saber em que direcção se orienta a transconflitualidade. No entanto, a direcção que acaba por se impor é decisiva, não só para definir o perfil prático do conflito, como o seu âmbito e o seu resultado.

Sugiro que, nas condições presentes do SMET, a análise dos processos de globalização e das hierarquias que eles produzem seja centrada nos critérios que definem o global/local. Para além da justificação acima dada, há uma outra que julgo importante e que se pode resumir no que designo por voracidade diferenciadora do global/local. No SMM a hierarquia entre centro, semiperiferia e periferia era articulável com uma série de dicotomias que derivavam de uma variedade de formas de diferenciação desigual. Entre as formas de dicotomização, saliento: desenvolvido/subdesenvolvido, moderno/tradicional, superior/inferior, universal/particular, racional/irracional, industrial/agrícola, urbano/rural. Cada uma destas formas tinha um registo semântico próprio, uma tradição intelectual, uma intencionalidade política e um horizonte projectivo. O que é novo no SMET é o modo como a dicotomia global/local tem vindo a absorver todas as outras, não só no discurso científico como no discurso político.

O global e o local são socialmente produzidos no interior dos processos de globalização. Distingo quatro processos de globalização produzidos por outros tantos modos de globalização. Eis a minha definição de modo de produção de globalização: é o conjunto de trocas desiguais pelo qual um determinado artefacto, condição, entidade ou identidade local estende a sua influência para além das fronteiras nacionais e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outro artefacto, condição, entidade ou identidade rival.

As implicações mais importantes desta concepção são as seguintes. Em primeiro lugar, perante as condições do sistema mundial em transição não existe globalização genuína; aquilo a que chamamos globalização é sempre a globalização bem sucedida de determinado localismo. Por outras palavras, não existe condição global para a qual não consigamos encontrar uma raiz local, real ou imaginada, uma inserção cultural específica. A segunda implicação é que a globalização pressupõe a localização. O processo que cria o global, enquanto posição dominante nas trocas desiguais, é o mesmo que produz o local, enquanto posição dominada e, portanto, hierarquicamente inferior. De facto, vivemos tanto num mundo de localização como num mundo de globalização. Portanto, em termos analíticos, seria igualmente correcto se a presente situação e os nossos tópicos de investigação se definissem em termos de localização, em vez de globalização. O motivo por que é preferido o último termo é, basicamente, o facto de o discurso científico hegemónico tender a privilegiar a história do mundo na versão dos vencedores. Não é por acaso que o livro de Benjamim Barber, sobre as tensões no processo de globalização, se intitula Jihad versus McWorl (1995) e não MacWorld versus Jihad .

Existem muitos exemplos de como a globalização pressupõe a localização. A língua inglesa enquanto lingua franca é um desses exemplos. A sua propagação enquanto língua global implicou a localização de outras línguas potencialmente globais, nomeadamente a língua francesa. Quer isto dizer que, uma vez identificado determinado processo de globalização, o seu sentido e explicação integrais não podem ser obtidos sem se ter em conta os processos adjacentes de relocalização com ele ocorrendo em simultâneo ou sequencialmente. A globalização do sistema de estrelato de Hollywood contribuiu para a localização (etnicização) do sistema de estrelato do cinema hindu. Analogamente, os actores franceses ou italianos dos anos 60 - de Brigitte Bardot a Alain Delon, de Marcello Mastroianni a Sophia Loren - que simbolizavam então o modo universal de representar, parecem hoje, quando revemos os seus filmes, provincianamente europeus, se não mesmo curiosamente étnicos. A diferença do olhar reside em que, de então para cá, o modo de representar hollywoodesco conseguiu globalizar-se. Para dar um exemplo de uma área totalmente diferente, à medida que se globaliza o hamburger ou a pizza, localiza-se o bolo de bacalhau português ou a feijoada brasileira, no sentido em que serão cada vez mais vistos como particularismos típicos da sociedade portuguesa ou brasileira.

Uma das transformações mais frequentemente associadas aos processos de globalização é a compressão tempo-espaço, ou seja, o processo social pelo qual os fenómenos se aceleram e se difundem pelo globo ( Harvey , 1989). Ainda que aparentemente monolítico, este processo combina situações e condições altamente diferenciadas e, por esse motivo, não pode ser analisado independentemente das relações de poder que respondem pelas diferentes formas de mobilidade temporal e espacial. Por um lado, existe a classe capitalista global, aquela que realmente controla a compressão tempo-espaço e que é capaz de a transformar a seu favor. Existem, por outro lado, as classes e grupos subordinados, como os trabalhadores migrantes e os refugiados, que nas últimas décadas têm efectuado bastante movimentação transfronteiriça, mas que não controlam, de modo algum, a compressão tempo-espaço. Entre os executivos das empresas multinacionais e os emigrantes e refugiados, os turistas representam um terceiro modo de produção da compressão tempo-espaço.

Existem ainda os que contribuem fortemente para a globalização mas, não obstante, permanecem prisioneiros do seu tempo-espaço local. Os camponeses da Bolívia, do Perú e da Colômbia, ao cultivarem coca, contribuem decisivamente para uma cultura mundial da droga, mas eles próprios permanecem "localizados" nas suas aldeias e montanhas como desde sempre estiveram. Tal como os moradores das favelas do Rio, que permanecem prisioneiros da vida urbana marginal, enquanto as suas canções e as suas danças, sobretudo o samba, constituem hoje parte de uma cultura musical globalizada.

Ainda noutra perspectiva, a competência global requer, por vezes, o acentuar da especificidade local. Muitos dos lugares turísticos de hoje têm de vincar o seu carácter exótico, vernáculo e tradicional para poderem ser suficientemente atractivos no mercado global de turismo.

A produção de globalização implica, pois, a produção de localização. Longe de se tratar de produções simétricas, é por via delas que se estabelece a hierarquização dominante no SMET. Nos seus termos, o local é integrado no global por duas vias possíveis: pela exclusão ou pela inclusão subalterna. Apesar de, na linguagem comum e no discurso político, o termo globalização transmitir a ideia de inclusão, o âmbito real da inclusão pela globalização, sobretudo económica, pode ser bastante limitado. Vastas populações do mundo, sobretudo em África, estão a ser globalizadas em termos do modo específico por que estão a ser excluídas pela globalização hegemónica.[11] O que caracteriza a produção de globalização é o facto de o seu impacto se estender tanto às realidades que inclui como às realidades que exclui. Mas o decisivo na hierarquia produzida não é apenas o âmbito da inclusão, mas a sua natureza. O local, quando incluído, é-o de modo subordinado, segundo a lógica do global. O local que precede os processos de globalização, ou que consegue permanecer à margem, tem muito pouco a ver com o local que resulta da produção global da localização. Aliás, o primeiro tipo de local está na origem dos processos de globalização, enquanto o segundo tipo é o resultado da operação destes.

O modo de produção geral de globalização desdobra-se em quatro modos de produção, os quais, em meu entender, dão origem a quatro formas de globalização.

A primeira forma de globalização é o localismo globalizado. Consiste no processo pelo qual determinado fenómeno local é globalizado com sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, a transformação da língua inglesa em lingua franca, a globalização do fast food americano ou da sua música popular, ou a adopção mundial das mesmas leis de propriedade intelectual, de patentes ou de telecomunicações promovida agressivamente pelos EUA. Neste modo de produção de globalização o que se globaliza é o vencedor de uma luta pela apropriação ou valorização de recursos ou pelo reconhecimento da diferença. A vitória traduz-se na faculdade de ditar os termos da integração, da competição e da inclusão. No caso do reconhecimento da diferença, o localismo globalizado implica a conversão da diferença vitoriosa em condição universal e a consequente exclusão ou inclusão subalterna de diferenças alternativas.

À segunda forma de globalização chamo globalismo localizado. Consiste no impacto específico nas condições locais produzido pelas práticas e imperativos transnacionais que decorrem dos localismos globalizados. Para responder a esses imperativos transnacionais, as condições locais são desintegradas, desestruturadas e, eventualmente, reestruturadas sob a forma de inclusão subalterna. Tais globalismos localizados incluem: a eliminação do comércio de proximidade; criação de enclaves de comércio livre ou zonas francas; desflorestação e destruição maciça dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; uso turístico de tesouros históricos, lugares ou cerimónias religiosos, artesanato e vida selvagem; dumping ecológico ("compra" pelos países do Terceiro Mundo de lixos tóxicos produzidos nos países capitalistas centrais para gerar divisas externas); conversão da agricultura de subsistência em agricultura para exportação como parte do "ajustamento estrutural"; etnicização do local de trabalho (desvalorização do salário pelo facto de os trabalhadores serem de um grupo étnico considerado "inferior" ou "menos exigente").[12]

Estes dois modos de produção de globalização operam em conjunção, mas devem ser tratados separadamente dado que os factores, os agentes e os conflitos que intervêm num e noutro são distintos. A produção sustentada de localismos globalizados e de globalismos localizados é cada vez mais determinante para a hierarquização específica das práticas interestatais. A divisão internacional da produção da globalização tende a assumir o seguinte padrão: os países centrais especializam-se em localismos globalizados, enquanto aos países periféricos cabe tão-só a escolha de globalismos localizados. Os países semiperiféricos são caracterizados pela coexistência de localismos globalizados e de globalismos localizados e pelas tensões entre eles. O sistema mundial em transição é uma trama de globalismos localizados e localismos globalizados.

Para além destes dois modos de produção de globalização há outros dois, talvez os que melhor definem as diferenças e a novidade do SMET em relação ao SMM porque ocorrem no interior da constelação das práticas que irrompeu com particular pujança nas últimas décadas - as práticas sociais e culturais transnacionais -, ainda que se repercutam nas restantes constelações de práticas. Dizem respeito à globalização da resistência aos localismos globalizados e aos globalismos localizados. Designo o primeiro por cosmopolitismo. Trata da organização transnacional da resistência de Estados-nação, regiões, classes ou grupos sociais vitimizados pelas trocas desiguais de que se alimentam os localismos globalizados e os globalismos localizados, usando em seu benefício as possibilidades de interacção transnacional criadas pelo sistema mundial em transição, incluindo as que decorrem da revolução nas tecnologias de informação e de comunicação. A resistência consiste em transformar trocas desiguais em trocas de autoridade partilhada, e traduz-se em lutas contra a exclusão, a inclusão subalterna, a dependência, a desintegração, a despromoção. As actividades cosmopolitas incluem, entre muitas outras: movimentos e organizações no interior das periferias do sistema mundial; redes de solidariedade transnacional não desigual entre o Norte e o Sul; a articulação entre organizações operárias dos países integrados nos diferentes blocos regionais ou entre trabalhadores da mesma empresa multinacional operando em diferentes países (o novo internacionalismo operário); redes internacionais de assistência jurídica alternativa; organizações transnacionais de direitos humanos; redes mundiais de movimentos feministas; organizações não governamentais (ONG's) transnacionais de militância anticapitalista; redes de movimentos e associações indígenas, ecológicas ou de desenvolvimento alternativo; movimentos literários, artísticos e científicos na periferia do sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, não imperialistas, contra-hegemónicos, empenhados em estudos sob perspectivas pós-coloniais ou subalternas. Pese embora a heterogeneidade dos movimentos e organizações envolvidas, a contestação à Organização Mundial de Comércio aquando da sua reunião em Seattle, a 30 de Novembro de 1999, foi uma eloquente manifestação do que designo por cosmopolitismo. Foi seguida por outras contestações contra as instituições financeiras da globalização hegemónica realizadas em Washington, Montreal, Genebra e Praga. O Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre em Janeiro de 2001 foi outra importante manifestação de cosmopolitismo.

O uso do termo "cosmopolitismo" para descrever práticas e discursos de resistência, contra as trocas desiguais no sistema mundial tardio, pode parecer inadequado em face da sua ascendência modernista, tão eloquentemente descrito por Toulmin (1990), bem como à luz da sua utilização corrente para descrever práticas que são aqui concebidas, quer como localismos globalizados, quer como globalismos localizados (para não referir a sua utilização para descrever o âmbito mundial das empresas multinacionais como "cosmocorp"). Emprego, contudo, para assinalar que, contrariamente à crença modernista (particularmente no momento de fin de siecle ), o cosmopolitismo é apenas possível de um modo intersticial nas margens do sistema mundial em transição como uma prática e um discurso contra-hegemónicos gerados em coligações progressistas de classes ou grupos subalternos e seus aliados. O cosmopolitismo é efectivamente uma tradição da modernidade ocidental, mas é uma das muitas tradições suprimidas ou marginalizadas pela tradição hegemónica que gerou no passado a expansão europeia, o colonialismo e o imperialismo, e que hoje gera os localismos globalizados e os globalismos localizados.

Neste contexto, é ainda necessário fazer uma outra precisão. O cosmopolitismo pode invocar a crença de Marx na universalidade daqueles que, sob o capitalismo, têm somente a perder as suas grilhetas.[13] Não enjeito tal invocação, mas insisto na distinção entre o cosmopolitismo, tal como o entendo, e o universalismo da classe trabalhadora marxista. Para além da classe operária descrita por Marx, as classes dominadas do mundo actual são agrupáveis em mais duas categorias, nenhuma delas redutível à classe-que-só-tem-a-perder-as-grilhetas. Por um lado, sectores consideráveis ou influentes das classes trabalhadoras dos países centrais, e até dos países semiperiféricos, que têm hoje mais a perder do que as grilhetas, mesmo que esse "mais" não seja muito mais, ou seja, mais simbólico do que material. [14]Por outro, vastas populações do mundo que nem sequer têm grilhetas, ou seja, que não são suficientemente úteis ou aptas para serem directamente exploradas pelo capital e a quem, consequentemente, a eventual ocorrência de uma tal exploração soaria como libertação. Em toda a sua variedade, as coligações cosmopolitas visam a luta pela emancipação das classes dominadas, sejam elas dominadas por mecanismos de opressão ou de exploração. Talvez por isso, contrariamente à concepção marxista, o cosmopolitismo não implica uniformidade e o colapso das diferenças, autonomias e identidades locais. O cosmopolitismo não é mais do que o cruzamento de lutas progressistas locais com o objectivo de maximizar o seu potencial emancipatório in loco através das ligações translocais/locais.

Provavelmente a mais importante diferença entre a minha concepção de cosmopolitismo e a universalidade dos oprimidos de Marx é que as coligações cosmopolitas progressistas não têm necessariamente uma base classista. Integram grupos sociais constituídos em base não-classista, vítimas, por exemplo, de discriminação sexual, étnica, rácica, religiosa, etária, etc. Por esta razão, em parte, o carácter progressista ou contra-hegemónico das coligações cosmopolitas nunca pode ser determinado em abstracto. Ao invés, é intrinsecamente instável e problemático. Exige dos que nelas participam uma auto-reflexividade permanente. Iniciativas cosmopolitas concebidas e criadas com um carácter contra-hegemónico podem vir a assumir posteriormente características hegemónicas, correndo mesmo o risco de se converterem em localismos globalizados. Basta pensar nas iniciativas de democracia participativa a nível local que durante anos tiveram de lutar contra o "absolutismo" da democracia representativa e a desconfiança por parte das elites políticas conservadoras, tanto nacionais como internacionais, e que hoje começam a ser reconhecidas e mesmo apadrinhadas pelo Banco Mundial seduzido pela eficácia e pela ausência de corrupção com que tais iniciativas aplicam os fundos e os empréstimos de desenvolvimento. A vigilância auto-reflexiva é essencial para distinguir entre a concepção tecnocrática de democracia participativa sancionada pelo Banco Mundial e a concepção democrática e progressista de democracia participativa, embrião de globalização contra-hegemónica.[15]

A instabilidade do carácter progressista ou contra-hegemónico decorre ainda de um outro factor: das diferentes concepções de resistência emancipatória por parte de iniciativas cosmopolitas em diferentes regiões do sistema mundial. Por exemplo, a luta pelos padrões mínimos da qualidade de trabalho (os chamados labor standards) - luta conduzida pelas organizações sindicais e grupos de direitos humanos dos países mais desenvolvidos, com objectivos de solidariedade internacionalista, no sentido de impedir que produtos produzidos com trabalho que não atinge esses padrões mínimos possam circular livremente no mercado mundial -, é certamente vista pelas organizações que a promovem como contra-hegemónica e emancipatória, uma vez que visa melhorar as condições de vida dos trabalhadores, mas pode ser vista por organizações similares dos países da periferia como mais uma estratégia hegemónica do Norte, cujo efeito útil é criar mais uma forma de proteccionismo favorável aos países ricos.

O segundo modo de produção de globalização em que se organiza a resistência aos localismos globalizados e aos globalismos localizados, é o que eu designo, recorrendo ao direito internacional, o património comum da humanidade. Trata-se de lutas transnacionais pela protecção e desmercadorização de recursos, entidades, artefactos, ambientes considerados essenciais para a sobrevivência digna da humanidade e cuja sustentabilidade só pode ser garantida à escala planetária. Pertencem ao património comum da humanidade, em geral, as lutas ambientais, as lutas pela preservação da Amazónia, da Antártida, da biodiversidade ou dos fundos marinhos e ainda as lutas pela preservação do espaço exterior, da lua e de outros planetas concebidos também como património comum da humanidade. Todas estas lutas se referem a recursos que, pela sua natureza, têm de ser geridos por outra lógica que não a das trocas desiguais, por fideicomissos da comunidade internacional em nome das gerações presentes e futuras.[16]

O cosmopolitismo e o património comum da humanidade conheceram grande desenvolvimento nas últimas décadas. Através deles se foi construindo uma globalização política alternativa à hegemónica desenvolvida a partir da necessidade de criar uma obrigação política transnacional correspondente à que até agora vinculou mutuamente cidadãos e Estados-nação. Tal obrigação política mais ampla é por agora meramente conjuntural uma vez que está ainda por concretizar (ou sequer imaginar) uma instância política transnacional correspondente à do Estado-nação. No entanto, as Organizações Não-Governamentais de advocacia progressista transnacional, as alianças entre elas e organizações e movimentos locais em diferentes partes do mundo, a organização de campanhas contra a globalização hegemónica (das campanhas do Greenpeace à Campanha Jubileu 2000), todos estes fenómenos são, por vezes, vistos como sinais de uma sociedade civil e política global apenas emergente.

Mas tanto o cosmopolitismo como o património comum da humanidade têm encontrado fortíssimas resistências por parte dos que conduzem a globalização hegemónica (localismos globalizados e globalismos localizados) ou dela se aproveitam. O património comum da humanidade, em especial, tem estado sob constante ataque por parte de países hegemónicos, sobretudo dos EUA. Os conflitos, as resistências, as lutas e as coligações em torno do cosmopolitismo e do património comum da humanidade demonstram que aquilo a que chamamos globalização é, na verdade, um conjunto de campos de lutas transnacionais. Daí a importância em distinguir entre globalização de-cima-para-baixo e globalização de-baixo-para-cima, ou entre globalização hegemónica e globalização contra-hegemónica. Os localismos globalizados e os globalismos localizados são globalizações de-cima-para-baixo ou hegemónicas; cosmopolitismo e património comum da humanidade são globalizações de-baixo-para-cima, ou contra-hegemónicas. É importante ter em mente que estes dois tipos de globalização não existem em paralelo como se fossem duas entidades estanques. Ao contrário, são a expressão e o resultado das lutas que se travam no interior do campo social que convencionámos chamar globalização e que em realidade se constrói segundo quatro modos de produção. Como qualquer outra, a concepção de globalização aqui proposta não é pacífica.[17] Para a situar melhor nos debates actuais sobre a globalização são necessárias algumas precisões.

7. Globalização hegemónica e contra-hegemónica

Um dos debates actuais gira em redor da questão de saber se há uma ou várias globalizações. Para a grande maioria dos autores, só há uma globalização, a globalização capitalista neoliberal, e por isso não faz sentido distinguir entre globalização hegemónica e contra-hegemónica. Havendo uma só globalização, a resistência contra ela não pode deixar de ser a localização auto-assumida. Segundo Jerry Mander, a globalização económica tem uma lógica férrea que é duplamente destrutiva. Não só não pode melhorar o nível de vida da esmagadora maioria da população mundial (pelo contrário, contribui para a sua pioria), como não é sequer sustentável a médio prazo (1996: 18). Ainda hoje a maioria da população mundial mantém economias relativamente tradicionais, muitos não são "pobres" e uma alta percentagem dos que são foram empobrecidos pelas políticas da economia neoliberal. Em face disto, a resistência mais eficaz contra a globalização reside na promoção das economias locais e comunitárias, economias de pequena-escala, diversificadas, auto-sustentáveis, ligadas a forças exteriores, mas não dependentes delas. Segundo esta concepção, numa economia e numa cultura cada vez mais desterritorializadas, a resposta contra os seus malefícios não pode deixar de ser a reterritorialização, a redescoberta do sentido do lugar e da comunidade, o que implica a redescoberta ou a invenção de actividades produtivas de proximidade.

Esta posição tem-se traduzido na identificação, criação e promoção de inúmeras iniciativas locais em todo o mundo. Consequentemente é hoje muito rico o conjunto de propostas que, em geral, podíamos designar por localização. Entendo por localização o conjunto de iniciativas que visam criar ou manter espaços de sociabilidade de pequena escala, comunitários, assentes em relações face-a-face, orientados para a auto-sustentabilidade e regidos por lógicas cooperativas e participativas. As propostas de localização incluem iniciativas de pequena agricultura familiar ( Berry , 1996; Inhoff , 1996), pequeno comércio local ( Norberg-Hodge , 1996), sistemas de trocas locais baseado em moedas locais ( Meeker-Lowry , 1996), formas participativas de auto-governo local ( Kumar , 1996; Morris , 1996). Muitas destas iniciativas ou propostas assentam na ideia de que a cultura, a comunidade e a economia estão incorporadas e enraizadas em lugares geográficos concretos que exigem observação e protecção constantes. É isto o que se chama bio-regionalismo ( Sale , 1996).

As iniciativas e propostas de localização não implicam necessariamente fechamento isolacionista. Implicam, isso sim, medidas de protecção contra as investidas predadoras da globalização neoliberal. Trata-se de um "novo proteccionismo": a maximização do comércio local no interior de economias locais, diversificadas e auto-sustentáveis e a minimização do comércio de longa distância ( Hines e Lang , 1996: 490).[18] O novo proteccionismo parte da ideia de que a economia global, longe de ter eliminado o velho proteccionismo, é, ela própria, uma táctica proteccionista das empresas multinacionais e dos bancos internacionais contra a capacidade das comunidades locais de preservarem a sua própria sustentabilidade e a da natureza.

O paradigma da localização não implica necessariamente a recusa de resistências globais ou translocais. Põe, no entanto, o acento tónico na promoção das sociabilidades locais. É esta a posição de Norberg-Hodge (1996), para quem é necessário distinguir entre estratégias para pôr freio à expansão descontrolada da globalização e estratégias que promovam soluções reais para as populações reais. As primeiras devem ser levadas a cabo por iniciativas translocais, nomeadamente através de tratados multilaterais que permitam aos Estados nacionais proteger as populações e o meio ambiente dos excessos do comércio livre. Ao contrário, o segundo tipo de estratégias, sem dúvida, as mais importantes, só pode ser levado a cabo através de múltiplas iniciativas locais e de pequena escala tão diversas quanto as culturas, os contextos e o meio ambiente em que têm lugar. Não se trata de pensar em termos de esforços isolados e antes de instituições que promovam a pequena escala em larga escala.

Esta posição é que mais se aproxima da que resulta da concepção de uma polarização entre globalização hegemónica e globalização contra-hegemónica aqui proposta. A diferença está na ênfase relativa entre as várias estratégias de resistência em presença. Em minha opinião, é incorrecto dar prioridade, quer às estratégias locais, quer às estratégias globais. Uma das armadilhas da globalização neoliberal consiste em acentuar simbolicamente a distinção entre o local e o global e ao mesmo tempo destruí-la ao nível dos mecanismos reais da economia. A acentuação simbólica destina-se a deslegitimar todos os obstáculos à expansão incessante da globalização neoliberal, agregando-os a todos sob a designação de local e mobilizando contra eles conotações negativas através dos fortes mecanismos de inculcação ideológica de que dispõe. Ao nível dos processos transnacionais, da economia à cultura, o local e o global são cada vez mais os dois lados da mesma moeda como, de resto, salientei acima. Neste contexto, a globalização contra-hegemónica é tão importante quanto a localização contra-hegemónica. As iniciativas, organizações e movimentos que acima designei como integrantes do cosmopolitismo e do património comum da humanidade, têm uma vocação transnacional mas nem por isso deixam de estar ancorados em locais concretos e em lutas locais concretas. A advocacia transnacional dos direitos humanos visa defendê-los nos locais concretos do mundo onde eles são violados, tal como a advocacia transnacional da ecologia visa pôr cobro a destruições concretas, locais ou translocais, do meio ambiente. Há formas de luta mais orientadas para a criação de redes entre locais, mas obviamente elas não serão sustentáveis se não partirem de lutas locais ou não forem sustentadas por elas. As alianças transnacionais entre sindicatos de trabalhadores da mesma empresa multinacional, a operar em diferentes países, visam melhorar as condições de vida em cada um dos locais de trabalho, dando mais força e mais eficácia às lutas locais dos trabalhadores. É neste sentido que se deve entender a proposta de Chase-Dunn (1998), no sentido da globalização política dos movimentos populares de modo a criar um sistema global democrático e colectivamente racional.

O global acontece localmente. É preciso fazer com que o local contra-hegemónico também aconteça globalmente. Para isso não basta promover a pequena escala em grande escala. É preciso desenvolver, como propus noutro lugar (Santos, 1999) uma teoria da tradução que permita criar inteligibilidade recíproca entre as diferentes lutas locais, aprofundar o que têm em comum de modo a promover o interesse em alianças translocais e a criar capacidades para que estas possam efectivamente ter lugar e prosperar.

À luz da caracterização do sistema mundial em transição que propus acima, o cosmopolitismo e o património comum da humanidade constituem globalização contra-hegemónica na medida em que lutam pela transformação de trocas desiguais em trocas de autoridade partilhada. Esta transformação tem de ocorrer em todas as constelações de práticas, mas assumirá perfis distintos em cada uma delas. No campo das práticas interestatais, a transformação tem de ocorrer simultaneamente ao nível dos Estados e do sistema interestatal. Ao nível dos Estados trata-se de transformar a democracia de baixa intensidade, que hoje domina, pela democracia de alta intensidade.[19] Ao nível do sistema interestatal, trata-se de promover a construção de mecanismos de controlo democrático através de conceitos como o de cidadania pós-nacional e o de esfera pública transnacional.

No campo das práticas capitalistas globais, a transformação contra-hegemónica consiste na globalização das lutas que tornem possível a distribuição democrática da riqueza, ou seja, uma distribuição assente em direitos de cidadania, individuais e colectivos, aplicados transnacionalmente.

Finalmente, no campo das práticas sociais e culturais transnacionais, a transformação contra-hegemónica consiste na construção do multiculturalismo emancipatório, ou seja, na construção democrática das regras de reconhecimento recíproco entre identidades e entre culturas distintas. Este reconhecimento pode resultar em múltiplas formas de partilha - tais como, identidades duais, identidades híbridas, interidentidade e transidentidade - mas todas elas devem orientar-se pela seguinte pauta transidentitária e transcultural: temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza e de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.[20]

8. A globalização hegemónica e o pós-Consenso de Washington

Distinguir entre globalização hegemónica e globalização contra-hegemónica implica pressupor a coerência interna de cada uma delas. Trata-se, no entanto, de um pressuposto problemático, pelo menos no actual período de transição em que nos encontramos. Já assinalei que a globalização contra-hegemónica, ainda que reconduzível a dois modos de produção de globalização - o cosmopolitismo e o património comum da humanidade -, é internamente muito fragmentada na medida em que assume predominantemente a forma de iniciativas locais de resistência à globalização hegemónica. Tais iniciativas estão enraizadas no espírito do lugar, na especificidade dos contextos, dos actores e dos horizontes de vida localmente constituídos. Não falam a linguagem da globalização e nem sequer linguagens globalmente inteligíveis. O que faz delas globalização contra-hegemónica é, por um lado, a sua proliferação um pouco por toda a parte enquanto respostas locais a pressões globais - o local é produzido globalmente - e, por outro lado, as articulações translocais que é possível estabelecer entre elas ou entre elas e organizações e movimentos transnacionais que partilham pelo menos parte dos seus objectivos.

Estas características gerais não vigoram, no entanto, de modo homogéneo em todo o planeta. Pelo contrário, articulam-se de modo diferenciado com diferentes condições nacionais e locais, sejam elas a trajectória histórica do capitalismo nacional; a estrutura de classes; o nível de desenvolvimento tecnológico; o grau de institucionalização dos conflitos sociais e, sobretudo, dos conflitos capital/trabalho; os sistemas de formação e qualificação da força de trabalho; as redes de instituições públicas que asseguram um tipo concreto de articulação entre a política e a economia. No que respeita especificamente a estas últimas, a nova economia institucional (North, 1990; Reis, 1998) tem vindo a salientar o papel central da ordem constitucional, o conjunto de instituições e de compromissos institucionalizados que asseguram os mecanismos de resolução de conflitos, os níveis de tolerância ante as desigualdades e os desequilíbrios, e, em geral, definem o que é preferível, permitido ou proibido (Boyer, 1998: 12). Cada ordem constitucional tem a sua própria historicidade e é ela que determina a especificidade da resposta local ou nacional às mesmas pressões globais. Esta especificidade faz com que, em termos de relações sociais e institucionais, não haja um só capitalismo mas vários.

O capitalismo, enquanto modo de produção, tem assim evoluído historicamente em diferentes famílias de trajectórias. Boyer distingue quatro dessas trajectórias as quais constituem as quatro configurações principais do capitalismo contemporâneo: o capitalismo mercantil dos EUA, Inglaterra, Canadá, Nova Zelândia e Austrália; o capitalismo mesocorporativo do Japão; o capitalismo social democrático da Suécia, Áustria, Finlândia, Noruega e Dinamarca, e, em menor grau, Alemanha; o capitalismo estatal da França, Itália e Espanha (Boyer, 1996, 1998). Esta tipologia restringe-se às economias dos países centrais, ficando, pois, fora dela a maioria dos capitalismos reais da Ásia, da América Latina, da Europa Central, do Sul e de Leste e da África. A sua utilidade reside em mostrar a variedade das formas de capitalismo e o modo diferenciado como cada uma delas se insere nas transformações globais.

No capitalismo mercantil o mercado é a instituição central; as suas insuficiências são supridas por agências de regulação; o interesse individual e a competição dominam todas as esferas da sociedade; as relações sociais, de mercado e de trabalho, são reguladas pelo direito privado; os mercados de trabalho são extremamente flexíveis; é dada toda a prioridade à inovação tecnológica promovida por diferentes tipos de incentivos e protegida pelo direito de patentes e de propriedade intelectual; são toleradas grandes desigualdades sociais bem como o subinvestimento em bens públicos ou de consumo colectivo (transportes públicos, educação, saúde, etc.). O capitalismo mesocorporativo japonês é liderado pela grande empresa; é no seio desta que se obtêm os ajustamentos económicos principais através dos bancos que detêm e da rede de empresas afiliadas que controlam; a regulação pública actua em estreita coordenação com as grandes empresas; dualidade entre os trabalhadores "regulares" e os trabalhadores "irregulares", sendo a linha divisória a entrada ou não na carreira estruturada no interior do mercado interno da grande empresa; são altos os níveis de educação generalista e a formação profissional é fornecida pelas empresas; aceita-se a estabilidade das desigualdades. O capitalismo social-democrático assenta na concertação social entre os parceiros sociais, as organizações representativas dos patrões e dos trabalhadores e o Estado; compromissos mutuamente vantajosos que garantam a compatibilidade entre ganhos de competitividade, inovação e produtividade, por um lado, e ganhos salariais e melhoria do nível de vida, por outro; prevalência da justiça social; alto investimento em educação; organização do mercado de trabalho de modo a minimizar a flexibilidade e a promover a qualificação como resposta ao aumento da competitividade e à inovação tecnológica; elevada protecção social contra os riscos; minimização das desigualdades sociais.

Finalmente, o capitalismo estatal assenta na centralidade da intervenção estatal como princípio de coordenação em face da fraqueza da ideologia do mercado e das organizações dos parceiros sociais; sistema público de educação para a produção de elites empresariais públicas e privadas; fraca formação profissional; mercado de trabalho altamente regulado; investigação científica pública com deficiente articulação com o sector privado; elevada protecção social. Apesar de Portugal continuar a ser uma sociedade semiperiférica, a institucionalidade capitalista que domina entre nós aponta para o tipo de capitalismo estatal. A plena consolidação deste modelo de institucionalidade parece estar bloqueada no nosso país, pelas pressões contraditórias, ainda que desiguais, de que o modelo é alvo e que, por paradoxal que pareça, são exercidas pelo próprio Estado: por um lado, as pressões no sentido do capitalismo social democrático e, por outro lado, as pressões bem mais fortes no sentido do capitalismo mercantil. Neste caótico processo de transição há ainda vestígios de capitalismo mesocorporativo, sobretudo em face da articulação íntima entre o Estado e os grupos financeiros e entre o Estado e grandes empresas públicas e privadas em fase de internacionalização.

Em face da coexistência destes quatro grandes tipos de capitalismo (e certamente de outros tipos em vigor nas regiões do mundo não integradas na classificação), pode questionar-se a existência de uma globalização económica hegemónica. Afinal, cada um destes tipos de capitalismo constitui um regime de acumulação e um modo de regulação dotados de estabilidade, em que é grande a complementaridade e a compatibilidade entre as instituições. Por esta via, o tecido institucional tem uma capacidade antecipatória ante possíveis ameaças desestruturantes. A verdade, porém, é que os regimes de acumulação e os modos de regulação são entidades históricas dinâmicas; aos períodos de estabilidade seguem-se períodos de desestabilização, por vezes induzidos pelos próprios êxitos anteriores. Ora desde a década de oitenta, temos vindo a assistir a uma enorme turbulência nesses diferentes tipos de capitalismo. A turbulência não é, porém, caótica e nela podemos detectar algumas linhas de força. São essas linhas de força que compõem o carácter hegemónico da globalização económica.

Em geral, e nos termos da definição de globalização acima proposta, pode dizer-se que a evolução consiste na globalização do capitalismo mercantil e na consequente localização dos capitalismos mesocorporativos, social democrático e estatal. Localização implica desestruturação e adaptação. As linhas de força por que uma e outra se têm pautado são as seguintes: os compromissos entre o capital e o trabalho são vulnerabilizados pela nova inserção na economia internacional (mercados livres e procura global de investimentos directos); a segurança da relação social é convertida em rigidez da relação salarial; a prioridade dada aos mercados financeiros bloqueia a distribuição de rendimentos e exige a redução das despesas públicas em material social; a transformação do trabalho num recurso global é feita de modo a coexistir com a diferenciação de salários e de preços; o aumento da mobilidade do capital faz com que a fiscalidade passe a incidir sobre rendimentos imóveis (sobretudo os do trabalho); o papel redistributivo das políticas sociais decresce e, em consequência, aumentam as desigualdades sociais; a protecção social é sujeita a uma pressão privatizante, sobretudo no domínio das pensões de reforma dado o interesse nelas por parte dos mercados financeiros; a actividade estatal intensifica-se, mas agora no sentido de incentivar o investimento, as inovações e as exportações; o sector empresarial do Estado, quando não é totalmente eliminado, é fortemente reduzido; a pauperização dos grupos sociais vulneráveis e a acentuação das desigualdades sociais são consideradas efeitos inevitáveis da prosperidade da economia e podem ser minoradas por medidas compensatórias desde que estas não perturbem o funcionamento dos mecanismos de mercado.

É este o perfil da globalização hegemónica, sobretudo económica e política. A sua identificação tem a ver com as escalas de análise. Ao nível da grande escala (a análise que cobre uma pequena área em grande detalhe), tal hegemonia é dificilmente detectável na medida em que a esta escala sobressaem sobretudo as particularidades nacionais e locais e as especificidades das respostas, resistências e adaptações a pressões externas. Pelo contrário, ao nível da pequena escala (a análise que cobre grandes áreas, mas com pouco detalhe), só são visíveis as grandes tendências globalizantes e a tal ponto que a diferenciação nacional ou regional do seu impacto e as resistências que lhe são movidas são negligenciadas. É a este nível de análise que se colocam os autores para quem a globalização é um fenómeno sem precedentes, tanto na sua estrutura, como na sua intensidade. Também para eles é inadequado falar de globalização hegemónica, pois, como referi acima, havendo uma só globalização inelutável, faz pouco sentido falar de hegemonia e, ainda menos, de contra-hegemonia. É ao nível da escala média que se torna possível identificar fenómenos globais hegemónicos que, por um lado, se articulam de múltiplas formas com condições locais, nacionais e regionais e que, por outro lado, são confrontados com resistências locais nacionais e globais que se podem caracterizar como contra-hegemónicas.

A escolha dos níveis de escala é assim crucial e pode ser determinada tanto por razões analíticas como por razões de estratégia política ou ainda por uma combinação entre elas. Por exemplo, para visualizar os conflitos entre os grandes motores do capitalismo global tem-se considerado adequado escolher uma escala de análise que distingue três grandes blocos regionais interligados por múltiplas interdependências e rivalidades: o bloco americano, o europeu e o japonês (Stallings e Streeck, 1995; Castells, 1996: 108). Cada um destes blocos tem um centro, os EUA a União Europeia e o Japão, respectivamente, uma semiperiferia e uma periferia. Ao nível desta escala, os dois tipos de capitalismo europeu acima referidos, o social-democrático e o estatal, aparecem fundidos num só. De facto, a União Europeia tem hoje uma política económica interna e internacional e é sob o seu nome que os diferentes capitalismos europeus travam as suas batalhas com o capitalismo norte-americano nos fora internacionais, nomeadamente na Organização Mundial do Comércio.

A escala média de análise é, pois, aquela que permite esclarecer melhor os conflitos e as lutas sociais que se travam à escala mundial e as articulações entre as suas dimensões locais, nacionais e globais. É também ela que permite identificar fracturas no seio da hegemonia. As linhas de força, que acima referi como sendo o núcleo da globalização hegemónica, traduzem-se em diferentes constelações institucionais, económicas, sociais, políticas e culturais ao articular-se com cada um dos quatro tipos de capitalismo ou com cada um dos três blocos regionais. Essas fracturas são hoje muitas vezes o ponto de entrada para lutas sociais locais-globais de orientação anticapitalista e contra-hegemónica.

As clivagens entre o capitalismo mercantil e o capitalismo social-democrático ou estatal, entre o modelo neoliberal de segurança social e o modelo social europeu ou ainda dentro do modelo neoliberal, ao mesmo tempo que revelam as fracturas no interior da globalização hegemónica criam o impulso para a formulação de novas sínteses entre as clivagens e com elas para a reconstituição da hegemonia. É assim que deve ser entendida a "terceira via" teorizada por Giddens (1999).

9. Graus de intensidade da globalização

A última precisão ao conceito de globalização defendido neste texto diz respeito aos graus de intensidade da globalização. Definimos globalização como conjuntos de relações sociais que se traduzem na intensificação das interacções transnacionais, sejam elas práticas interestatais, práticas capitalistas globais ou práticas sociais e culturais transnacionais. A desigualdade de poder no interior dessas relações (as trocas desiguais) afirma-se pelo modo como as entidades ou fenómenos dominantes se desvinculam dos seus âmbitos ou espaços e ritmos locais de origem, e, correspondentemente, pelo modo como as entidades ou fenómenos dominados, depois de desintegrados e desestruturados, são revinculados aos seus âmbitos, espaços e ritmos locais de origem. Neste duplo processo, quer as entidades ou fenómenos dominantes (globalizados), quer os dominados (localizados) sofrem transformações internas. Mesmo o hamburguer norte-americano teve de sofrer pequenas alterações para se desvincular do seu âmbito de origem (o Midwest norte-americano) e conquistar o mundo, e o mesmo sucedeu com as leis de propriedade intelectual, a música popular e o cinema de Hollywood. Mas enquanto as transformações dos fenómenos dominantes são expansivas, visam ampliar âmbitos, espaços e ritmos, as transformações dos fenómenos dominados são retractivas, desintegradoras e desestruturantes; os seus âmbitos e ritmos, que eram locais por razões endógenas e raramente se auto-representavam como locais, são relocalizados por razões exógenas e passam a auto-representar-se como locais. A desterritorialização, desvinculação local e transformação expansiva, por um lado, e a reterritorialização, revinculação local e transformação desintegradora e retractiva, por outro, são as duas faces da mesma moeda, a globalização.

Estes processos ocorrem de modos muitos distintos. Quando se fala de globalização tem-se normalmente em mente processos muito intensos e muito rápidos de desterritorialização e de reterritorialização e consequentemente transformações expansivas e retractivas muito dramáticas. Nestes casos, é relativamente fácil explicar estes processos por um conjunto limitado de causas bem definidas. A verdade, porém, é que os processos de globalização nem sempre ocorrem desta forma. Por vezes são mais lentos, mais difusos, mais ambíguos e as suas causas mais indefinidas. Claro que é sempre possível estipular que neste caso não estamos perante processos de globalização. É isto mesmo o que tendem a fazer os autores mais entusiastas a respeito da globalização e os que vêem nela algo sem precedentes, tanto pela natureza, como pela intensidade.[21]

Penso, porém, que esta estratégia analítica não é a melhor porque, contrariamente ao que pretende, reduz o âmbito e a natureza dos processos de globalização em curso. Proponho, pois, a distinção entre globalização de alta intensidade para os processos rápidos, intensos e relativamente monocausais de globalização, e globalização de baixa intensidade para os processos mais lentos e difusos e mais ambíguos na sua causalidade. Um exemplo ajudará a identificar os termos da distinção. Escolho, entre muitos outros possíveis, um dos consensos de Washington: o primado do direito e da resolução judicial dos litígios como parte do modelo de desenvolvimento liderado pelo mercado. Em meados da década de oitenta, começaram a chegar aos tribunais de vários países europeus casos que envolviam figuras públicas, indivíduos poderosos ou notórios na actividade económica ou na actividade política. Estes casos, quase todos da área criminal (corrupção, burla, falsificação de documentos), deram uma visibilidade pública e um protagonismo político sem precedentes aos tribunais. Se exceptuarmos o caso do Tribunal Supremo dos EUA, desde a década de quarenta, os tribunais dos países centrais - e, de resto, também os dos países semiperiféricos e periféricos - tinham tido uma vida apagada. Reactivos e não proactivos, resolvendo litígios entre indivíduos que raramente captavam a atenção pública, sem intervenção nos conflitos sociais, os tribunais - a sua actividade, as suas regras e os seus agentes - eram desconhecidos do grande público. Este estado de coisas começou a mudar na década de oitenta e rapidamente os tribunais passaram a ocupar as primeiras páginas dos jornais, a sua actividade converteu-se numa curiosidade jornalística e os magistrados tornaram-se figuras públicas.

Tal fenómeno ocorreu, por exemplo, na Itália, na França, na Espanha e em Portugal, e em cada país teve causas próximas específicas. A ocorrência paralela e simultânea do mesmo fenómeno em diferentes países não faz dela um fenómeno global, a menos que as causas endógenas, diferentes de país para país, tenham entre si afinidades estruturais ou partilhem traços de causas remotas, comuns e transnacionais. E de facto este parece ter sido o caso. Pese embora as diferenças nacionais, sempre significativas, podemos detectar no novo protagonismo judicial alguns factores comuns. Em primeiro lugar, as consequências da confrontação entre o princípio do Estado e o princípio do mercado na gestão da vida social de que resultaram as privatizações e a desregulamentação da economia, a desmoralização dos serviços públicos, a crise dos valores republicanos, um novo protagonismo do direito privado, a emergência de actores sociais poderosos para quem se transferiram prerrogativas de regulação social, antes detidas pelo Estado. Tudo isto criou uma nova promiscuidade entre o poder económico e o poder político que permitiu às elites circular facilmente e, por vezes, pendularmente, de um para outro. Esta promiscuidade combinada como enfraquecimento da ideia de bem público ou bem comum acabou por se traduzir numa nova patrimonialização ou privatização do Estado que muitas vezes recorreu à ilegalidade para se concretizar. Foi a criminalidade de colarinho branco e, em geral, a corrupção que deram a notoriedade aos tribunais.

Em segundo lugar, a crescente conversão da globalização capitalista hegemónica em algo irreversível e incontornável combinada com os sinais de crise dos regimes comunistas conduziu à atenuação das grandes clivagens políticas. Estas, que antes permitiam a resolução política dos conflitos políticos, deixaram de o poder fazer e estes últimos foram atenuados, fragmentados e personalizados até ao ponto de se poderem transformar em conflitos judiciais. Chamamos a este processo político de despolitização, judicialização da política. Em terceiro lugar, esta judicialização da política, que foi, na sua génese, um sintoma da crise da democracia, alimentou-se desta. A legitimidade democrática que antes assentava quase exclusivamente nos órgãos políticos eleitos, o parlamento e o executivo, foi-se transferindo de algum modo para os tribunais.

Este fenómeno que, além dos países atrás referidos, tem vindo a ocorrer na última década em muitos outros países da Europa de Leste, da América Latina e da Ásia[22] e a mesma relação entre causas próximas (endógenas e específicas) e causas remotas (comuns, transnacionais) pode ser detectada ainda que com adaptações. Por esta razão, considero estarmos perante um fenómeno de globalização de baixa intensidade.

Muito diferente deste processo é o que, na mesma área da justiça e do direito, tem vindo a ser protagonizado pelos países centrais, através das suas agências de cooperação e assistência internacional, e pelo Banco Mundial, FMI e Banco Interamericano para o Desenvolvimento, no sentido de promover nos países semiperiféricos e periféricos profundas reformas jurídicas e judiciais que tornem possível a criação de uma institucionalidade jurídica e judicial eficiente e adaptada ao novo modelo de desenvolvimento, assente na prioridade do mercado e das relações mercantis entre cidadãos e agentes económicos. Para este objectivo têm sido canalizadas vultuosas doações e empréstimos sem qualquer precedente quando comparadas com as políticas de cooperação, de modernização e de desenvolvimento dos anos sessenta e setenta. Tal como no processo de globalização acima descrito, também aqui está em curso uma política de primado do direito e dos tribunais e dela estão a decorrer os mesmos fenómenos de visibilidade pública dos tribunais, de judicialização da política e da consequente politização do judicial. No entanto, ao contrário do processo anterior, este processo é muito rápido e intenso, ocorre pelo impulso de factores exógenos dominantes, bem definidos e facilmente reconduzíveis a políticas globais hegemónicas interessadas em criar, a nível global, a institucionalidade que facilita a expansão limitada do capitalismo global.[23] Trata-se de uma globalização de alta intensidade.

A utilidade desta distinção reside em que ela permite esclarecer as relações de poder desigual que subjazem aos diferentes modos de produção de globalização e que são, por isso, centrais na concepção de globalização aqui proposta. A globalização de baixa intensidade tende a dominar em situações em que as trocas são menos desiguais, ou seja, em que as diferenças de poder (entre países, interesses, actores ou práticas por detrás de concepções alternativas de globalização) são pequenas. Pelo contrário, a globalização de alta intensidade tende a dominar em situações em que as trocas são muito desiguais e as diferenças de poder são grandes.

10. Para onde vamos?

A intensificação das interacções económicas, políticas e culturais transnacionais das três últimas décadas assumiu proporções tais que é legítimo levantar a questão de saber se com isso se inaugurou um novo período e um novo modelo de desenvolvimento social. A natureza precisa deste período e deste modelo está no centro dos debates actuais sobre o carácter das transformações em curso nas sociedades capitalistas e no sistema capitalista mundial como um todo. Defendi atrás que o período actual é um período de transição a que chamei o período do sistema mundial em transição. Combina características próprias do sistema mundial moderno com outras que apontam para outras realidades sistémicas ou extrasistémicas. Não se trata de uma mera justaposição de características modernas e emergentes já que a combinação entre elas altera a lógica interna de umas e outras. O sistema mundial em transição é muito complexo porque constituído por três grandes constelações de práticas - práticas interestatais, práticas capitalistas globais e práticas sociais e culturais transnacionais - profundamente entrelaçadas segundo dinâmicas indeterminadas. Trata-se, pois, de um período de grande abertura e indefinição, um período de bifurcação cujas transformações futuras são imperscrutáveis. A própria natureza do sistema mundial em transição é problemática e a ordem possível é a ordem da desordem. Mesmo admitindo que um novo sistema se seguirá ao actual período de transição, não é possível estabelecer uma relação determinada entre a ordem que o sustentará e a ordem caótica do período actual ou a ordem não caótica que a precedeu e que sustentou durante cinco séculos o sistema mundial moderno. Nestas circunstâncias, não admira que o período actual seja objecto de várias e contraditórias leituras. São duas as leituras alternativas principais acerca das mudanças actuais do sistema mundial em transição e dos caminhos que apontam: aleitura paradigmática e a leitura subparadigmática. A leitura paradigmática sustenta que o final dos anos sessenta e o início dos anos setenta marcaram o período de transição paradigmática no sistema mundial, um período de crise final da qual emergirá um novo paradigma social. Uma das leituras paradigmáticas mais sugestivas é a proposta por Wallerstein e seus colaboradores.[24] Segundo este autor, o sistema mundial moderno entrou num período de crise sistémica iniciado em 1967 e que se estenderá até meados do século XXI. Na sua perspectiva, o período entre 1967 e 1973 é um período crucial porque marca uma conjuntura tripla de pontos de ruptura no sistema mundial: a) o ponto de ruptura numa longa curva de Kondratief (1945-1995?); b) o ponto de ruptura da hegemonia dos EUA sobre o sistema mundial (1873-2025?); c) o ponto de ruptura no sistema mundial moderno (1450-2100?).

Wallerstein previne que as provas que apoiam esta tripla ruptura são mais sólidas em a) do que em b) e em b) mais do que em c), o que se compreende uma vez que o ponto final putativo dos ciclos está sucessivamente mais afastado no futuro. Segundo ele, a expansão económica mundial está a conduzir à mercadorização extrema da vida social e à extrema polarização (não só quantitativa mas também social) e, como consequência, está a atingir o seu limite máximo de ajustamento e de adaptação e esgotará em breve "a sua capacidade de manutenção dos ciclos rítmicos que são o seu bater cardíaco" (1991a: 134). O colapso dos mecanismos de ajustamento estrutural abre um vasto terreno para a experimentação social e para escolhas históricas reais, muito difíceis de prever. Com efeito, as ciências sociais modernas revelam-se aqui de pouca utilidade, a menos que elas mesmas se sujeitem a uma revisão radical e se insiram num questionar mais amplo. Wallerstein designa tal questionamento por utopística (distinto de utopismo), i.e., "a ciência das utopias utópicas... a tentativa de clarificar as alternativas históricas reais que estão à nossa frente quando um sistema histórico entra numa fase de crise, e avaliar nesse momento extremo de flutuações as vantagens e as desvantagens das estratégias alternativas" (1991a: 270).

De uma perspectiva diferente embora convergente, Arrighi convida-nos a revisitar as previsões de Schumpeter acerca do futuro do capitalismo e com base nelas coloca a questão schumpeteriana: poderá o capitalismo sobreviver ao sucesso? (Arrighi, 1994: 325; Arrighi e Silver, 1999). Há uns 50 anos, Schumpeter formulou a tese de que "o desempenho actual e prospectivo do sistema capitalista é tal que refuta a ideia de o seu colapso ocorrer sob o peso do fracasso económico, mas o seu próprio sucesso corrompe as instituições sociais que o protegem e "inevitavelmente" cria as condições sob as quais não conseguirá sobreviver e que apontam fortemente para o socialismo como o seu aparente herdeiro" (Schumpeter, 1976: 61). Schumpeter era assim muito céptico acerca do futuro do capitalismo e Arrighi defende que a história poderá vir a dar-lhe razão: "A sua ideia de que uma outra viragem bem sucedida estava ao alcance do capitalismo revelou-se obviamente correcta. Mas as possibilidades indicam que, durante o próximo meio século, a história provará estar também certa a sua outra ideia de que a cada viragem bem sucedida se criam as condições sob as quais a sobrevivência do capitalismo é cada vez mais difícil" (Arrighi, 1994: 325). Em trabalho mais recente, Arrighi e Silver salientam o papel da expansão do sistema financeiro nas crises finais das ordens hegemónicas anteriores (holandesa e britânica). A actual financeirização da economia global aponta para a crise final da última e mais recente hegemonia, a dos EUA. Este fenómeno não é, pois, novo, o que é novo e radicalmente novo é a sua combinação com a proliferação e o crescente poder das empresas multinacionais e o modo como elas interferem com o poder dos Estados nacionais. É nesta combinação que se virá a sustentar uma transição paradigmática (1999: 271-289).

A leitura subparadigmática vê o período actual como um importante processo de ajustamento estrutural, no qual o capitalismo não parece dar mostra de falta de recursos ou de imaginação adequados. O ajustamento é significativo porque implica a transição de um regime de acumulação para outro, ou de um modo de regulação ("fordismo") para outro (ainda por nomear; "pós-fordismo"), como vem sendo sustentado pelas teorias da regulação.[25] De acordo com alguns autores, o período actual de transição põe a descoberto os limites das teorias de regulação e dos conceitos que elas converteram em linguagem comum como o conceito de "regimes de acumulação" e de "modos de regulação" (McMichael e Myhre, 1990; Boyer, 1996, 1998). As teorias da regulação, pelo menos as que tiveram mais circulação, tomaram o Estado-nação como a unidade da análise económica, o que fazia provavelmente sentido no período histórico do desenvolvimento capitalista dos países centrais em que essas teorias foram formuladas. Hoje, porém, a regulação nacional da economia está em ruínas e dessas ruínas está a emergir uma regulação transnacional, uma "relação salarial global", paradoxalmente assente na fragmentação crescente dos mercados de trabalho que transforma drasticamente o papel regulatório do Estado-nação, forçando a retirada da protecção estatal dos mercados nacionais da moeda, trabalho e mercadorias e suscitando uma profunda reorganização do Estado. Na verdade, pode estar a ser forjada uma nova forma política: o "Estado transnacional".

Como seria de esperar, tudo isto é questionável e está a ser questionado. Como vimos acima, a real dimensão do enfraquecimento das funções regulatórias do Estado-nação é hoje um dos debates nucleares da sociologia e da economia políticas. Inquestionável é apenas o facto de que tais funções mudaram (ou estão a mudar) dramaticamente e de um forma que questiona o dualismo tradicional entre regulação nacional e internacional.

Dentro da leitura subparadigmática do actual período de desenvolvimento capitalista há, contudo, algum consenso em torno das seguintes questões. Dada a natureza antagónica das relações sociais capitalistas, a reprodução rotineira e a expansão sustentada da acumulação de capital é inerentemente problemática. De modo a ser obtida, pressupõe a) uma correspondência dinâmica entre um determinado padrão de produção e um determinado padrão de consumo (i.e., um regime de acumulação) e b) um conjunto institucional de normas, instituições, organizações e pactos sociais, que assegure a reprodução de todo um campo de relações sociais sobre o qual o regime de acumulação está baseado (i.e., um modo de regulação). Poderá haver crises do regime de acumulação e crises no regime de acumulação e o mesmo se passa com o modo de regulação. Desde os anos sessenta, os países centrais estão a atravessar uma dupla crise do regime de acumulação e do modo de regulação. O papel regulatório do Estado-nação tende a ser mais decisivo nas crises do do que nas crises no, mas o modo como isso é exercido depende fortemente do contexto internacional, da integração da economia nacional na divisão internacional do trabalho e das capacidades e recursos institucionais específicos do Estado em articular, sob condições de crise hostis, estratégias de acumulação com estratégicas hegemónicas e estratégias de confiança.[26]

A leitura paradigmática é muito mais ampla do que a leitura subparadigmática, tanto nas suas afirmações substantivas como na amplitude do seu tempo-espaço. Segundo ela, a crise do regime de acumulação e do modo de regulação são meros sintomas de uma crise muito mais profunda: uma crise civilizatória ou epocal. As "soluções" das crises subparadigmáticas são produto dos mecanismos de ajustamento estrutural do sistema; dado que estes estão a ser irreversivelmente corroídos, tais "soluções" serão cada vez mais provisórias e insatisfatórias. Por seu lado, a leitura subparadigmática é, no máximo, agnóstica relativamente às previsões paradigmáticas e considera que, por serem de longo prazo, não são mais que conjecturas. Sustenta ainda que, se o passado tem alguma lição a dar-nos, é a de que até agora o capitalismo resolveu com sucesso as suas crises e sempre num horizonte temporal curto.

A confrontação entre leituras paradigmáticas e leituras subparadigmáticas tem dois registos principais, o analítico e o ideológico-político. O registo analítico, como acabámos de ver, é a formulação mais consistente do debate sobre se a globalização é um fenómeno novo ou um fenómeno velho. Porque se assume que o novo de hoje é sempre o prenúncio do novo de amanhã, os autores que consideram a globalização um fenómeno novo são os mesmos que perfilham as leituras paradigmáticas, enquanto os autores que consideram a globalização um fenómeno velho, renovado ou não, são os mesmos que perfilham leituras subparadigmáticas.[27]

Mas esta confrontação tem também um registo político-ideológico, uma vez que estão em causa diferentes perspectivas sobre a natureza, o âmbito e a orientação político-ideológica das transformações em curso e, portanto, também das acções e das lutas que as hão-de promover ou, pelo contrário, combater.

As duas leituras são de facto os dois argumentos fundamentais a respeito da acção política nas condições turbulentas dos nossos dias. Os argumentos paradigmáticos apelam a actores colectivos que privilegiam a acção transformadora enquanto os argumentos subparadigmáticos apelam a actores colectivos que privilegiam a acção adaptativa. Trata-se de dois tipos-ideais de actores colectivos. Alguns actores sociais (grupos, classes, organizações) aderem apenas a um dos argumentos, mas muitos deles subscrevem um ou outro, consoante o tempo ou o tema, sem garantirem fidelidades exclusivas ou irreversíveis a um ou a outro. Alguns actores podem experienciar a globalização da economia no modo subparadigmático e a globalização da cultura no modo paradigmático, enquanto outros as podem conceber de modo inverso. Mais do que isso, alguns podem conceber como económicos os mesmos processos de globalização que outros consideram culturais ou políticos. Os actores que privilegiam a leitura paradigmática tendem a ser mais apocalípticos na avaliação dos medos, riscos, perigos e colapsos do nosso tempo e a ser mais ambiciosos relativamente ao campo de possibilidades e escolhas históricas que está a ser revelado. O processo de globalização pode assim ser visto, quer como altamente destrutivo de equilíbrios e identidades insubstituíveis, quer como a inauguração de uma nova era de solidariedade global ou até mesmo cósmica.

Por sua vez, para os actores que privilegiam a leitura subparadigmática, as actuais transformações globais na economia, na política e na cultura, apesar da sua relevância indiscutível, não estão a forjar nem um novo mundo utópico, nem uma catástrofe. Expressam apenas a turbulência temporária e o caos parcial que acompanham normalmente qualquer mudança nos sistemas rotinizados.

A coexistência de interpretações paradigmáticas e de interpretações subparadigmáticas é provavelmente a característica mais distintiva do nosso tempo. E não será esta a característica de todos os períodos de transição paradigmática? A turbulência inevitável e controlável para uns é vista por outros como prenúncio de rupturas radicais. E entre estes últimos, há os que vêem perigos incontroláveis onde outros vêem oportunidades para emancipações insuspeitáveis. As minhas análises do tempo presente, a minha preferência pelas acções transformadoras e, em geral, a minha sensibilidade - e esta é a palavra exacta - inclinam-me a pensar que as leituras paradigmáticas interpretam melhor a nossa condição no início do novo milénio do que as leituras subparadigmáticas.[28]

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  • [1] Walton (1985) refere três formas sucessivas de "divisões internacionais do trabalho", caracterizando-se a última e actual pela globalização da produção levada a cabo pelas multinacionais. Uma revisão das diferentes abordagens às "novas divisões internacionais do trabalho", pode ser vista em Jenkins (1984). Ver igualmente Gordon (1988).
  • [2] No mesmo sentido, cfr. Wade (1990, 1996) e Whitley (1992).
  • [3] Segundo o mesmo relatório, 46% da população mundial a viver em pobreza absoluta vive na África subsahariana, 40% no Sul da Ásia e 15% no Extremo Oriente, Pacífico e América Latina. De qualquer modo, a proporção de pessoas a viver em pobreza absoluta diminuiu entre 1993 e 1998 de 29% para 24% (PNUD, 2001: 22). Ver também Kennedy (1993: 193-228) e Chossudovsky (1997). De acordo com Maizels (1992) as exportações de bens primários do Terceiro Mundo aumentaram quase 100% durante o período 1980-88. Mas as receitas obtidas em 1988 foram 30% inferiores às obtidas em 1980. Ver também Singh (1993).
  • [4] Em 1995, a malária afectava, por cada 100 habitantes, 16 pessoas no Quénia, 21 na Nova Guiné Papua, 33 na Zâmbia (PNUD, 1999).
  • [5] Ver Stallings (1992b). Da perspectiva das relações internacionais, ver Durand, Lévy, Retaillé (1993).
  • [6] Cfr. Featherstone (1990); Appadurai (1990); Berman (1983); W. Meyer (1987); Giddens (1990, 1991); Bauman (1992). Ver também Wuthnow (1985, 1987); Bergesen (1980).
  • [7] Ver também Featherstone (1990: 10); Wallerstein (1991a: 184); Chase-Dunn (1991: 103). Para Wallerstein o contraste entre o sistema-mundial moderno e os impérios mundiais anteriores reside no facto de o primeiro combinar uma única divisão do trabalho com um sistema de Estados independentes e de sistemas culturais múltiplos (Wallerstein, 1979: 5).
  • [8] Sobre esta questão, ver Stallings (1995) em que são analisadas as respostas regionais da América Latina, do Sudeste Asiático e da África sub-sahariana às pressões globais. Ver também Boyer (1998) e Drache (1999)
  • [9] Entre muitos outros, ver Boyer (1996, 1998); Drache (1999).
  • [10] Sobre os conceitos de turbulência de escalas e de explosão de escalas, ver Santos (1996).
  • [11] Cfr. também McMichael (1996: 169). A dialéctica da inclusão e da exclusão é particularmente visível no mercado global da comunicação e da informação. Com excepção da África do Sul, o continente africano é, para este mercado, um continente inexistente.
  • [12] O globalismo localizado pode ocorrer sob a forma do que Fortuna chama "globalização passiva", a situação em que "algumas cidades se vêem incorporadas de modo passivo nos meandros da globalização e são incapazes de fazer reconhecer aqueles recursos [globalizantes próprios] no plano transnacional" (1997: 16).
  • [13] A ideia do cosmopolitismo como universalismo, cidadania do mundo, negação das fronteiras políticas e territoriais, tem uma longa tradição na cultura ocidental, da lei cósmica de Pitágoras e a philallelia de Demócrito ao "Homo suum, humani nihil a me alienum puto" de Terêncio, da res publica christiana medieval aos humanistas da Renascença, da ideia de Voltaire para quem "para ser bom patriota [é] necessário tornar-se inimigo do resto do mundo" até ao internacionalismo operário.
  • [14] A distinção entre o material e o simbólico não deve ser levada para além de limites razoáveis já que cada um dos pólos da distinção contém o outro (ou alguma dimensão do outro), ainda que de forma recessiva. O "mais" material a que me refiro são basicamente os direitos económicos e sociais conquistados e tornados possíveis pelo Estado-Providência: os salários indirectos, a segurança social, etc. O "mais" simbólico inclui, por exemplo, a inclusão na ideologia nacionalista, ou na ideologia consumista e a conquista de direitos desprovidos de meios eficazes de aplicação. Uma das consequências da globalização hegemónica tem sido a crescente erosão do "mais" material, compensada pela intensificação do "mais" simbólico.
  • [15] Analiso esta questão no meu estudo sobre o orçamento participativo em Porto Alegre (Santos, 1998a).
  • [16] Sobre o património comum da humanidade, ver, entre muitos outros, Santos (1995: 365-373) e o estudo exaustivo de Pureza (1999).
  • [17] Sobre a globalização de-baixo-para-cima ou contra-hegemónica, ver Hunter (1995); Kidder e McGinn (1995). Ver também Falk (1995 e 1999). Ambos os trabalhos visam as coligações e redes internacionais de trabalhadores que emergiram do NAFTA.
  • [18] No mesmo sentido, é sugerido que os movimentos progressistas devem usar os instrumentos do nacionalismo económico para combater as forças do mercado.
  • [19] Sobre os conceitos de democracia de alta intensidade e de democracia de baixa intensidade, ver Santos (1998b) e Santos (2000b).
  • [20] Sobre este ponto, cfr. Santos (1997).
  • [21] Ver, por todos, Castells (1996).
  • [22] Este fenómeno está analisado em detalhe em Santos (2000b).
  • [23] Sobre este "movimento" da reforma global dos tribunais, ver Santos (2000b).
  • [24] Wallerstein (1991a); Hopkins et al. (1996). Ver também Arrighi e Silver (1999).
  • [25] Aglietta (1979); Boyer (1986, 1990). Ver também Jessop (1990a, 1990b); Kotz (1990); Mahnkopf (1988); Noel (1987); Vroey (1984).
  • [26] Sobre estas três estratégias do Estado moderno, ver Santos (1995: 99-109).
  • [27] Apesar de considerarem a globalização um fenómeno velho, alguns dos teóricos do sistema mundial, como é o caso de Wallerstein, perfilham leituras paradigmáticas a partir de análises sistémicas, nomeadamente da análise da sobreposição de pontos de ruptura nos diferentes processos de longa duração que constituem o sistema mundial moderno.
  • [28] A justificação desta posição é apresentada noutro lugar (Santos, 1995, 2000a).



Published 2002-08-22


Original in Portuguese
Contributed by Revista Crítica de Ciências Sociais
© Boaventura de Sousa Santos
© eurozine "
 
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